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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Feliz Citação

31.08.20, Olga Cardoso Pinto

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"No conto tudo precisa de ser apontado num risco leve e sóbrio: das figuras deve-se ver apenas a linha flagrante e definidora que revela e fixa uma personalidade; dos sentimentos, apenas o que caiba num olhar, ou numa dessas palavras que escapa dos lábios e traz todo o ser; da paisagem somente os longes, numa cor unida".


Eça de Queiroz

 

 

 

Conto: A Primavera num Arco-Íris

2ª parte

25.08.20, Olga Cardoso Pinto

a primavera num arco iris_OCP (2).jpg

Para hoje cá vai a 2º parte do conto, continuando a história que foi iniciada semana passada. Aqui está a 1ª parte para quem não leu

Boa leitura

Bjs

 

***

 

     À medida que os humanos se afastavam, aproximavam-se os animais, das cidades e das localidades desertas de gente, talvez curiosos pela ausência humana, em vontades para explorar todo aquele mundo humano desconhecido. Na minha janela apareciam pombos com quem partilhei algumas migalhas de pão. O hábito foi-se instalando – todos os dias, quase às mesmas horas, lá vinham eles e quando me demorava a satisfazer-lhe a gulodice, insinuavam-se através da vidraça como dizendo «Então?! Despacha-te, queremos comer!». Ganhei novos amigos - um engraçado bando encabeçado por um pombo ladino que até já falava comigo! Falar não falava, pelo menos na língua de gente, mas passei a compreendê-lo, por exemplo avisando-me da aproximação de uma gaivota que lambia o bico ao ver aqueles pombos gordinhos e bem alimentados. Os miúdos, também, apreciavam a companhia diária daqueles seres voadores que já se sentiam à-vontade no parapeito da nossa janela.

     O vírus já tinha nome, era a última informação atualizada nos noticiários, descendia de uma ampla família coroada pela sua nefasta malignidade. Surgira no mundo sem se saber como e nada o fazia deter. Levava os mais velhos, sem defesas que os protegessem contra este mal que os atirava para os hospitais ou num isolamento pior que a velhice, sem poderem ser visitados, mimados e no caso das últimas horas de vida, numa solidão que nem aos animais se deveria permitir. Era o vírus que impedia a partilha em comunidade, forçava ao isolamento e à solidão, o vírus que virou a vida de pernas para o ar, depois de a agitar na posição máxima da batedeira.

     Eu continuava a ir ao supermercado, revezando-me com o meu companheiro, porém tentava fazer as compras por perto, na mercearia da qual já era cliente. E continuava o ritual adquirido recentemente: desinfetante e proteção para o chão para quando chegasse não contaminar a casa. Não esquecia a máscara e o álcool gel, outros adereços que deveriam fazer parte das rotinas diárias. Cabelo apanhado e roupas fáceis de tirar e lavar. Enfim, era uma canseira…ficava ansiosa para me desprender e ir para a minha caminhada, para o meu retiro, para o meu mundo. Vestir a alma que ficara alcandorada naquele velho freixo.

     A seguir ao confinamento veio o desconfinamento, o abrandar das medidas que limitavam a nossa liberdade e opções. Estava agora nas nossas mãos, aquelas que diziam contribuir para o contágio, o rumo que as nossas vidas iriam tomar no trajeto da maldita pandemia e no regresso à relativa normalidade. Naquele maio que surgia tórrido no seu final, convidando as idas à praia, às esplanadas e jardins, todos estavam ávidos para desfrutar do exterior, deixar que a liberdade devorasse o medo e o calor o vírus. Aos poucos foi-se abrindo a porta, alguns trabalhadores já podiam regressar ao trabalho, bem era necessário para muitos garantirem o pão na mesa e o pagamento das despesas mensais. Ia-se ganhando mais confiança, porém toda a cautela era pouca.
     Por casa ainda se teletrabalhava e os filhos não regressariam à escola, continuavam com a telescola e nos trabalhos propostos por nós. A brincadeira, os pequenos passeios, as leituras e as atividades lúdicas continuavam a preencher as horas das semanas sem relógio.
Eu rumava para as minhas caminhadas solitárias todos os dias, alheia aos transeuntes que se somavam agora pelos caminhos, outrora desertos. Entrava na floresta, nessa sombra fantasiosa onde brincavam a luz e a sombra para criarem ambientes e personagens irreais. Descalçava-me e caminhava de pés nus para encontrar o meu freixo. Imponente, desgastado pelos séculos exposto aos elementos, e no entanto sábio, aconchegante e protetor. Ali escrevia e desenhava numa inspiração infindável!
     «Já sinto o odor da floresta, o perfume da Natureza. O trinar das aves ondula pelos meus ouvidos. A brisa fresca revolve as tenras folhas dos carvalhos e prende-se à madeixa dos meus cabelos, zombando da minha admiração pelo cenário que me cativa. O cantarolar da água desvia-me os sentidos, como é fresco e convidativo. Reparo no efeito da luz e das sombras, criam efeitos fantásticos, surreais, tentam a imaginação. Os raios de sol incidem numa clareira, onde brilha um imenso tufo de erva fresca. As gotículas do orvalho resplandecem como pérolas atraindo libelinhas e abelhas.
Liberto-me deste enlevo e acomodo-me sob este belo freixo, recosto-me no seu amplo tronco, testemunha de tantas eras. Alongo o olhar para uma ramificada e altiva aveleira, cresce segura e renovada pela nova primavera num arco-íris.»
     Respirei fundo, fazendo uma pausa da escrita, inspirei a felicidade que ali pairava, abri o meu livro e transportei-me para um novo tempo, uma nova história, uma nova vida...
     Faz falta voltar às origens, à natureza, ao despojamento. Desprendermo-nos das amarras das rotinas automatizadas. É essencial voltarmos a conviver com a Natureza, passar horas com ela e deixarmo-nos invadir por esse desapego, pelo fluir da vida e parar o tempo, respirar fundo e permitirmo-nos invadir por sentimentos leves e inspiradores para os dias de obrigações, de compromissos, de medo. Aproveitemos este tempo que pode ser de mudança, de melhoria. A Natureza é a vitamina, a vacina e a cura para os males que afetam o ser humano. Perdemos este contacto natural que faz parte da nossa génese, é tempo de o retomar e a reaprender a abrandar, tal como a Natureza faz!
     Fechei o livro onde escrevia proficuamente e guardeio-o do mundo no tronco da árvore anciã, bem no âmago do seu ser, naquele buraco escavado pelo desfiar do tempo.
     Esta primavera encerrada, confinada, vivemo-la nós humanos. Contudo, lá fora a vida gira, voam as aves construindo os ninhos onde nascerá o amor, o cuidar. Renovam-se as cabeleiras das árvores em vibrantes verdes e flores resplandecentes de perfumes. O azul cerúleo do céu aviva-se em dias mais longos e amenos. Revolvem-se as ondas do mar desse oceano atlântico que beija as praias deste país antigo, merecedor que Atlas continue a suster as colunas do mundo, domando as suas águas revoltas. Geram-se os bebés protegidos nos ventres maternos e cofiam-se os sentimentos dos pais que também os geram no coração. O silêncio ainda se solta por aí, nas horas em que nós alimentamos o corpo e a esperança, numa ânsia de que tudo vá ficar bem. Há arco-íris em muitas vidraças pintados pelas mãos das crianças nos seus afazeres artísticos. Por aqui por casa, também um ganhou vida e exibe-se orgulhoso na janela da cozinha, saudando cada amanhecer e despedindo-se de cada dia que passa.

     Numa dessas noites quentes, como era habitual, ao despedir-me dos filhos para uma noite de bom sono, o mais novo confessou:
     — Estes dias têm sido os mais felizes da minha vida!
     Eu estranhando a observação, pois muito se passara em tão pouco tempo, nesta reviravolta nas nossas vidas, perguntei:
     — E então porquê?
     — Ora…porque posso brincar mais, fazer as coisas que gosto mais e passamos mais tempo juntos! É tudo MAIS!
     Sorri. Que grande lição! De facto, para uma criança estes tempos eram tempos Mais - mais tempo ganho ao relógio, às companhias, às coisas boas da vida. Éramos Mais família! Nem tudo era mau…nessa noite, pela primeira vez, adormeci feliz.

 

CONTINUA

 

Conto: A Primavera num Arco-íris

1ª parte

17.08.20, Olga Cardoso Pinto

a primavera num arco iris_OCP.jpg

Hoje inicio a partilha do conto A Primavera num Arco-Íris do qual já tinha publicado a sinopse.

Esta história ficcionada, foi inspirada e escrita em pleno confinamento. Ainda hesitei na sua composição, porém a tentação de criar foi mais forte. Deixei vaguear a imaginação para além das paredes de casa, dos pensamentos e dos sentimentos que me assolavam. Tive muito onde me inspirar e deixei que a mão lavrasse em escrita e desenho o branco do papel e do ecrã do computador. Espero que vos agrade.

Bjs

***

 

      O dia amanhecera com a neblina delicadamente pousada sobre os campos, como fiapos de gaze que se desfaziam ao menor sopro. O astro rei surgia timidamente sobre esta pátina que aprimorava o quadro. Pelos campos, ainda em repouso, já cirandavam algumas pombas madrugadoras. As árvores engalanavam-se com as primeiras flores, dando ao jardim o aspeto de festa antecipada.
    Suspirei, desalentada pela visão inusitada que oferecia a minha janela. Apesar do bucolismo que se deparava através dos vidros, da primavera estar aí, de amar este lugar, a tristeza, pelo que sabia, era evidente. Ao longe, o frémito da autoestrada dormitava, ainda era cedo, no entanto nessa manhã, nesse dia não haveria trânsito.
     Naqueles meados de março a incredulidade instalava-se - «Portugueses, acabei de decretar o estado de emergência» proferiu o presidente da república aos canais de televisão a 18 de março de 2020, à hora do jantar. "Uma decisão excecional num tempo excecional" acrescentava. Dias após desta declaração, a incredulidade foi dando lugar a uma letargia assombrada devido às notícias que iam surgindo em catadupa, sobre a pandemia, nos meios de comunicação. Como era possível? Tanto frenesim nas nossas vidas, com imensas viagens, grande consumismo, tantos avanços científicos, tanta medicina de ponta… e tudo fora vencido por um vírus? Um agente infecioso, somente visto através de um microscópio muito especial, fizera o mundo parar? Senti o despertar de um medo, de início cavalgando em crescendo para depois transformar-se num ribombar que me saltava do peito, deste coração agora atormentado! Enquanto esteve na China, lá longe, parecia que nada teria a ver connosco. Agora estava aqui, pronto para invadir o nosso modo de vida, os nossos corpos e resistências. Assaltaram-me vontades primitivas de subsistência e proteção. Tinha de proteger e defender a minha família. E o futuro? Os alimentos, o emprego? As poupanças? A segurança…a saúde? Seremos todos infetados com este terrível vírus?
     Nos dias seguintes apoderou-se de mim uma necessidade enorme de ir às compras, de trazer para casa quantidades enormes de comida, de água, de alimentos que pudessem ser armazenados por longos períodos. Dominava-me um frenesim de tornar a minha casa numa fortaleza intransponível onde eu e os meus pudéssemos ficar isolados do mundo, sem ter de sair, de nos expormos aos outros. Fiquei paranoica com as limpezas e higienização, tudo era limpo com lixívia, álcool e água oxigenada. As minhas mãos acusavam já o desgaste destes produtos. Ir às compras era como ir e estar na guerra. Demorava uma infinidade de tempo para sair, ia ao supermercado num ápice, afastando-me desconfiada dos demais. Voltava a casa e com minuciosa e demorada limpeza arrumava tudo com os maiores cuidados. Depois tomava um banho. Demorei horas nisto! Já para não referir que ficava sempre à porta um balde com água e lixívia para limpar os sapatos antes de entrar em casa. Resultado, fiquei alérgica ao seu cheiro intenso.
     Todos me diziam para ter calma, para abrandar, estava a ficar paranoica e causava instabilidade nos filhos. Estava a instigar-lhes o medo sem o saber. Tudo lá fora, no exterior, representava o mal, a vulnerabilidade, a doença.
     O trabalho da empresa era feito em casa, em teletrabalho. As horas de descanso e em família imiscuíam-se nas horas de trabalho. Com os miúdos em casa, a exigência do meu acompanhamento ao estudo, às atividades para se distraírem e o teletrabalho deixavam-me exausta. Perdi o gosto de me vestir, de me arranjar, perdi a vaidade. Passei a deitar-me tarde, a horas que em tempos, antes da pandemia, já me recebiam para repousar em sonhos e noites calmas. Assistia a notícias repetidas, numa avidez de consumo informativo que nunca tivera. O marido nada podia dizer sem receber uma resposta mal-humorada, tornava-me intolerante e implicativa. O meu lar transformava-se lentamente no lugar que tanto queria evitar.

     O mundo estava a cair no caos da pandemia, nos números cada vez maiores de infetados e mortes. As manhãs terminavam com a assídua contabilização dos contagiados, dos mortos e dos poucos recuperados. Os nomes transformavam-se em algarismos, sem rosto sem condição, somente a condição da doença que grassava por todo o mundo. Toda a humanidade, por mais diferentes que fossem as línguas, as culturas, as tradições, concentrava esforços para combater a pandemia que alastrava democraticamente pelo globo terrestre. A vida fechava-se, as cidades ausentes do habitual quotidiano ficavam desertas, as pessoas afastavam-se, evitavam-se, tornavam-se reclusas nas suas próprias casas.
     Numa linda manhã, com o sol a espreguiçar-se na minha janela, o meu filho mais pequeno olhou-me intensamente nos olhos, como lendo a minha alma e questionou-me:
     — Mamã, voltaremos a ter as nossas vidas?
     Ouvi a sua voz de criança lá longe, como se ele estivesse distante de mim. Encarei o seu rosto infantil, de olhos perspicazes aguardando uma resposta.
     — Creio que sim…, mas não sei quando. — Senti uma pontada no peito que me impediu de respirar fundo. Senti-me impotente.
     Ele abraçou-me com os seus tenros e pequenos braços, num envolvimento aconchegado que me despertou. Beijei-o longamente, naquelas bochechas coradas, macias e doces que me levaram para o dia do seu nascimento, para o dia que nasci como mãe. Apesar de tudo, ainda tinha perto de mim os que amava profundamente, ainda os poderia abraçar. Não vivia em solidão. Então despertei – tinha a minha família comigo, nestes tempos tão difíceis que iriam pôr à prova as nossas forças, o nosso espírito mais combativo. Era urgente unirmo-nos e darmos graças por isso, pois também o mundo se unia para se proteger e combater esta peçonha, este vírus maldito.

   Depois da bofetada inicial, do turbilhão de informação, parei! Parei para pensar, para ponderar a realidade. Tinha de ser, senão ficaria doida!
     Não sou pessoa de me queixar, foram várias as provas a que fui sujeita, testada até, e daí calibrei os meus sentimentos, as minhas atitudes. Reagir e adaptar – foram as palavras que se formularam no meu cérebro. Tinha uma família para orientar, para proteger, mas com racionalidade e esperança! As poupanças asseguravam-nos durante uns tempos, por enquanto não seriam preocupação. Como casal conseguíamos gerir as nossas finanças, nestes tempos isso seria essencial – tínhamos dois filhos menores…
    A resiliência (palavra tão gasta em experiências anteriores) estava de novo aí. Mas o que nos pediam? Para ficarmos em casa, confinados.
     — E ficar em casa é assim tão difícil? Para ti, não! — dizia-me o marido.
   É verdade! Tirem-me a criatividade, os livros, o computador, as canetas, os papeis, os pincéis e as tintas…assim, sim é difícil ficar em casa. Fui acalmando-me, tentando ser a pessoa que sempre fui – encontrando o equilíbrio para a racionalidade na fantasia e na criatividade.

     Os dias foram passando, agora sentia-me mais calma, inspirada até. Fomo-nos habituando a esta nova realidade, uma realidade confinada que para uns foi uma prisão e para mim revelou-se uma libertação, afinal! Libertei-me dos horários rígidos, dos compromissos e obrigações, das visitas enfadonhas…e sei lá do que mais. Vivíamos tempos excecionais que ficariam para a história do mundo, para a história da humanidade.
     O confinamento só era interrompido para coisas essenciais, como ir comprar alimentos e medicamentos, assistência a familiares e pequenos passeios higiénicos perto da residência.
    Eu sentia dentro de mim algo a crescer, uma necessidade de sair para arejar apesar das tarefas criativas que me davam alento, no entanto, sentia que estava a ficar asfixiada, com dificuldade em respirar, não por causa deste vírus, mas pela ansiedade de estar dias a fio fechada, como cheguei a comentar com o marido. Tinha de sair, nem que fosse para ver mais céu. Fui criada em espaços abertos, na imensidão da terra, dos lameiros pintalgados pelo gado ruminante, nas paisagens sem gente dentro e com tanto para sentir. Invejei os pássaros pela sua liberdade de irem onde quisessem.
     Como vivia numa cidade onde a aldeia espreitava a cada esquina, decidi retomar uma atividade que deixara há alguns anos e que com o tempo esquecera como era tão calmante, tão antídoto contra as maleitas do corpo e do espírito. Então, comecei a caminhar sozinha pelas redondezas. No início caminhei pela paisagem tocada pelo homem, pelos campos agrícolas, pelos caminhos perto dos ribeiros. Apreciava como os campos eram lavrados, quais as sementeiras. Interessei-me pelos animais por ali criados, achei piada aos patos e gansos que me seguiam quando passava, aos cavalos que me acenavam com as longas crinas e relinchavam satisfeitos. Queria mais, mais natureza intocada, pois apercebi-me que o Homem domina tudo, açambarca, domestica, contamina…como um vírus.
     Um dia caminhei para mais longe. A cidade ficara para trás, sob o sol quente de abril, medrosa do futuro que a aguardava. Brilhavam as casas caiadas, os prédios envidraçados por janelas. As aves afoitavam-se para fazerem os ninhos, encaracolavam-se no céu os fumos das queimadas das limpezas dos campos.  Olhei para trás, já na ponte que cruzava o ribeiro, parei e repeti três vezes “caminho de encantar, caminho de encantar, leva-me onde a minha alma ficar”, pois lembrei uma lenda que se contava sobre aquela mesma passagem. Perdi o tempo em que caminhei, sem, no entanto, me cansar e dei comigo na orla de um caminho atapetado de cascalho miúdo e muita vegetação rasteira. Como num amplexo vegetal, ali estavam imensas árvores de porte imponente, saudando-me. Fui-me adentrando pela floresta que me convidava num sussurro impercetível e que eu ia descodificando a cada vez que por lá voltava. Sim, voltei inúmeras vezes, as pernas levavam-me sem ter de pensar. Ali sentia-me desprender da realidade, do medo, do vírus, deste corpo que me limitava. Envolvia-me uma serenidade, um acarinhar que não sei descrever. Com o tempo, aprimoravam-se os meus sentidos, despertavam como se tivessem estado presos num longo sono. Conseguia enxergar mais longe e definido, nas sombras e no crepúsculo. Ouvia mais nítido cada som da natureza, distinguia o cantar dos pássaros sem nunca ter sabido os seus nomes. Os odores pareciam-me perfumes. Pela manhã cheirava ao fresco do orvalho que aviva o musgo, às folhas secas em decomposição, pela tarde com o calor do sol cheirava a verão, às cascas das árvores acalentadas pelos seus raios, cheirava a urze e a alecrim… não precisava falar. Sim, falar, esse sentido tão humano, que nos distingue dos demais, dos outros seres. Eu não proferia palavras, deixava divagar os pensamentos ou antes, os sentimentos pois não precisava pensar, somente agradecer por me ser permitido desfrutar destes locais que nos dão tanto e sem pedirem nada em troca. Não teria de pagar para poder caminhar pela floresta, por me sentar e usufruir daquele imenso bosque onde a única melodia era o cantar dos pássaros e o restolhar das folhas embaladas pelo vento. Poderia banhar-me no ribeiro, nesse correr vagaroso de água límpida, doce e murmurante calma. Escolher um seixo polido e guardá-lo como uma joia, uma relíquia da qual desconhecia o passado. E não havia o vírus nem o perigo de me infetar. Vivi assim num embalo que me renovava dia-a-dia. Parava para a vida lá fora. Quando regressava a casa, voltava rejuvenescida. Iluminada pela ancestralidade daquela floresta, contava histórias aos miúdos, contos nascidos graças à inspiração que me era dada pela natureza.

 

CONTINUA (ver aqui a 2ª parte , ver aqui a 3ª parte)

 

Desafio: Se não fosse humana que outro animal gostava de ser...

13.08.20, Olga Cardoso Pinto

andorinha das chamines2.jpgMais um desafio da querida amiga Ana de Deus, e agora há nova casa para todas estas histórias: «Os desafios da Abelha».

Neste desafio «Se não fosse humana que outro animal gostava de ser» estendi-me nas palavras, mas creio que a Ana não se importará, pois é um tema que dá muito gosto escrever.

Obrigada Aninha pelo convite! E continua a motivar-nos a escrever em grupo.

 

Numa outra vida, num outro lugar, fui alguém que não sabia o que eram amarras, o que eram grades aprisionantes, o que era ser sedentário, agarrado sempre ao mesmo espaço, ao mesmo céu.
Numa outra vida, num outro lugar fui uma ave. Só poisava para dormir. O céu era o meu meio, o meu espaço. As minhas asas pequenas eram fortes, com elas cruzava os céus deste mundo que era todo meu. Viajar era a minha vida, para países longínquos naquela África, que tal como o significado da palavra deste continente, era uma empreitada recheada de façanhas e valentia da qual só sobreviviam os mais fortes. Anunciei muitas Primaveras ao voltar ao lugar onde nasci, num ímpeto instigado pela Mãe Natureza, numa ânsia de partir e voltar, sem malas, nem adereços, somente a família mais rica em novos membros. Fui feliz na minha singularidade, na minha combinação de cores – o preto de brilho azulado e o branco, com retoques de carmesim na minha pequena cabeça onde crescia o amor e o cuidar da família e da comunidade. Naqueles finais de tarde os meus silvos juntavam-se a tantos outros, nos volteados ondulantes pelos céus de verão. Era essa a liberdade de um pequeno ser, de uma bela ave de nome andorinha-das-chaminés que fui numa outra vida, num outro tempo sem preconceitos, numa vivência feliz e singela.

Agora como humana, gostaria de voltar a ser perfeita, ter tudo e não ter nada, ser simples no viver, ser liberdade, ser uma andorinha...

 

Escrita e ilustração

Conto «A Primavera num Arco-Íris»

12.08.20, Olga Cardoso Pinto

a primavera num arco iris_OCP.jpg

Sinopse

***

O mundo como o conhecemos transformou-se, obrigado a parar e a fechar-se por um vírus desconhecido que foi deixando à sua passagem um elevado número de infetados e mortos. O medo do contágio levou cidades inteiras a ficarem desertas de gente, algo impensável nestes nossos tempos modernos.
O ano de 2020 viu a primavera desabrochar por dentro das vidraças das janelas e das varandas. Em família ou em solidão cada um recolhia-se, colocando em pausa a vida do atribulado quotidiano.
Certamente diferente para cada um que viveu este tempo excecional, este conto traz em jeito ficcionado a vivência de uma família de quatro, a sua experiência muito particular através da narração da mãe. Ela mostra-nos, a partir do futuro, como foram os dias de enorme preocupação, quase paranoia, para proteger a sua família. Quando tudo parecia desmoronar-se, a mãe encontra uma forma de manter-se mentalmente estável. É nas caminhadas pela floresta que descobre o equilíbrio e a sanidade para lidar com esta revolução que a pandemia trouxe às suas vidas. Esta experiência, que se revela maravilhosamente avassaladora, contagia também os filhos e o marido. E, embora o caos estivesse pelo mundo, a mãe verte as sensações deste saudável contágio da natureza para a escrita e para os desenhos que vão preenchendo páginas de um livro. Este manuscrito irá ser um legado para a família, um registo por vezes fantasioso de uma realidade que balança entre o medo e o equilíbrio, mas também entre o amor e a esperança.

 

***