Hoje inicio a partilha do conto A Primavera num Arco-Íris do qual já tinha publicado a sinopse.
Esta história ficcionada, foi inspirada e escrita em pleno confinamento. Ainda hesitei na sua composição, porém a tentação de criar foi mais forte. Deixei vaguear a imaginação para além das paredes de casa, dos pensamentos e dos sentimentos que me assolavam. Tive muito onde me inspirar e deixei que a mão lavrasse em escrita e desenho o branco do papel e do ecrã do computador. Espero que vos agrade.
Bjs
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O dia amanhecera com a neblina delicadamente pousada sobre os campos, como fiapos de gaze que se desfaziam ao menor sopro. O astro rei surgia timidamente sobre esta pátina que aprimorava o quadro. Pelos campos, ainda em repouso, já cirandavam algumas pombas madrugadoras. As árvores engalanavam-se com as primeiras flores, dando ao jardim o aspeto de festa antecipada.
Suspirei, desalentada pela visão inusitada que oferecia a minha janela. Apesar do bucolismo que se deparava através dos vidros, da primavera estar aí, de amar este lugar, a tristeza, pelo que sabia, era evidente. Ao longe, o frémito da autoestrada dormitava, ainda era cedo, no entanto nessa manhã, nesse dia não haveria trânsito.
Naqueles meados de março a incredulidade instalava-se - «Portugueses, acabei de decretar o estado de emergência» proferiu o presidente da república aos canais de televisão a 18 de março de 2020, à hora do jantar. "Uma decisão excecional num tempo excecional" acrescentava. Dias após desta declaração, a incredulidade foi dando lugar a uma letargia assombrada devido às notícias que iam surgindo em catadupa, sobre a pandemia, nos meios de comunicação. Como era possível? Tanto frenesim nas nossas vidas, com imensas viagens, grande consumismo, tantos avanços científicos, tanta medicina de ponta… e tudo fora vencido por um vírus? Um agente infecioso, somente visto através de um microscópio muito especial, fizera o mundo parar? Senti o despertar de um medo, de início cavalgando em crescendo para depois transformar-se num ribombar que me saltava do peito, deste coração agora atormentado! Enquanto esteve na China, lá longe, parecia que nada teria a ver connosco. Agora estava aqui, pronto para invadir o nosso modo de vida, os nossos corpos e resistências. Assaltaram-me vontades primitivas de subsistência e proteção. Tinha de proteger e defender a minha família. E o futuro? Os alimentos, o emprego? As poupanças? A segurança…a saúde? Seremos todos infetados com este terrível vírus?
Nos dias seguintes apoderou-se de mim uma necessidade enorme de ir às compras, de trazer para casa quantidades enormes de comida, de água, de alimentos que pudessem ser armazenados por longos períodos. Dominava-me um frenesim de tornar a minha casa numa fortaleza intransponível onde eu e os meus pudéssemos ficar isolados do mundo, sem ter de sair, de nos expormos aos outros. Fiquei paranoica com as limpezas e higienização, tudo era limpo com lixívia, álcool e água oxigenada. As minhas mãos acusavam já o desgaste destes produtos. Ir às compras era como ir e estar na guerra. Demorava uma infinidade de tempo para sair, ia ao supermercado num ápice, afastando-me desconfiada dos demais. Voltava a casa e com minuciosa e demorada limpeza arrumava tudo com os maiores cuidados. Depois tomava um banho. Demorei horas nisto! Já para não referir que ficava sempre à porta um balde com água e lixívia para limpar os sapatos antes de entrar em casa. Resultado, fiquei alérgica ao seu cheiro intenso.
Todos me diziam para ter calma, para abrandar, estava a ficar paranoica e causava instabilidade nos filhos. Estava a instigar-lhes o medo sem o saber. Tudo lá fora, no exterior, representava o mal, a vulnerabilidade, a doença.
O trabalho da empresa era feito em casa, em teletrabalho. As horas de descanso e em família imiscuíam-se nas horas de trabalho. Com os miúdos em casa, a exigência do meu acompanhamento ao estudo, às atividades para se distraírem e o teletrabalho deixavam-me exausta. Perdi o gosto de me vestir, de me arranjar, perdi a vaidade. Passei a deitar-me tarde, a horas que em tempos, antes da pandemia, já me recebiam para repousar em sonhos e noites calmas. Assistia a notícias repetidas, numa avidez de consumo informativo que nunca tivera. O marido nada podia dizer sem receber uma resposta mal-humorada, tornava-me intolerante e implicativa. O meu lar transformava-se lentamente no lugar que tanto queria evitar.
O mundo estava a cair no caos da pandemia, nos números cada vez maiores de infetados e mortes. As manhãs terminavam com a assídua contabilização dos contagiados, dos mortos e dos poucos recuperados. Os nomes transformavam-se em algarismos, sem rosto sem condição, somente a condição da doença que grassava por todo o mundo. Toda a humanidade, por mais diferentes que fossem as línguas, as culturas, as tradições, concentrava esforços para combater a pandemia que alastrava democraticamente pelo globo terrestre. A vida fechava-se, as cidades ausentes do habitual quotidiano ficavam desertas, as pessoas afastavam-se, evitavam-se, tornavam-se reclusas nas suas próprias casas.
Numa linda manhã, com o sol a espreguiçar-se na minha janela, o meu filho mais pequeno olhou-me intensamente nos olhos, como lendo a minha alma e questionou-me:
— Mamã, voltaremos a ter as nossas vidas?
Ouvi a sua voz de criança lá longe, como se ele estivesse distante de mim. Encarei o seu rosto infantil, de olhos perspicazes aguardando uma resposta.
— Creio que sim…, mas não sei quando. — Senti uma pontada no peito que me impediu de respirar fundo. Senti-me impotente.
Ele abraçou-me com os seus tenros e pequenos braços, num envolvimento aconchegado que me despertou. Beijei-o longamente, naquelas bochechas coradas, macias e doces que me levaram para o dia do seu nascimento, para o dia que nasci como mãe. Apesar de tudo, ainda tinha perto de mim os que amava profundamente, ainda os poderia abraçar. Não vivia em solidão. Então despertei – tinha a minha família comigo, nestes tempos tão difíceis que iriam pôr à prova as nossas forças, o nosso espírito mais combativo. Era urgente unirmo-nos e darmos graças por isso, pois também o mundo se unia para se proteger e combater esta peçonha, este vírus maldito.
Depois da bofetada inicial, do turbilhão de informação, parei! Parei para pensar, para ponderar a realidade. Tinha de ser, senão ficaria doida!
Não sou pessoa de me queixar, foram várias as provas a que fui sujeita, testada até, e daí calibrei os meus sentimentos, as minhas atitudes. Reagir e adaptar – foram as palavras que se formularam no meu cérebro. Tinha uma família para orientar, para proteger, mas com racionalidade e esperança! As poupanças asseguravam-nos durante uns tempos, por enquanto não seriam preocupação. Como casal conseguíamos gerir as nossas finanças, nestes tempos isso seria essencial – tínhamos dois filhos menores…
A resiliência (palavra tão gasta em experiências anteriores) estava de novo aí. Mas o que nos pediam? Para ficarmos em casa, confinados.
— E ficar em casa é assim tão difícil? Para ti, não! — dizia-me o marido.
É verdade! Tirem-me a criatividade, os livros, o computador, as canetas, os papeis, os pincéis e as tintas…assim, sim é difícil ficar em casa. Fui acalmando-me, tentando ser a pessoa que sempre fui – encontrando o equilíbrio para a racionalidade na fantasia e na criatividade.
Os dias foram passando, agora sentia-me mais calma, inspirada até. Fomo-nos habituando a esta nova realidade, uma realidade confinada que para uns foi uma prisão e para mim revelou-se uma libertação, afinal! Libertei-me dos horários rígidos, dos compromissos e obrigações, das visitas enfadonhas…e sei lá do que mais. Vivíamos tempos excecionais que ficariam para a história do mundo, para a história da humanidade.
O confinamento só era interrompido para coisas essenciais, como ir comprar alimentos e medicamentos, assistência a familiares e pequenos passeios higiénicos perto da residência.
Eu sentia dentro de mim algo a crescer, uma necessidade de sair para arejar apesar das tarefas criativas que me davam alento, no entanto, sentia que estava a ficar asfixiada, com dificuldade em respirar, não por causa deste vírus, mas pela ansiedade de estar dias a fio fechada, como cheguei a comentar com o marido. Tinha de sair, nem que fosse para ver mais céu. Fui criada em espaços abertos, na imensidão da terra, dos lameiros pintalgados pelo gado ruminante, nas paisagens sem gente dentro e com tanto para sentir. Invejei os pássaros pela sua liberdade de irem onde quisessem.
Como vivia numa cidade onde a aldeia espreitava a cada esquina, decidi retomar uma atividade que deixara há alguns anos e que com o tempo esquecera como era tão calmante, tão antídoto contra as maleitas do corpo e do espírito. Então, comecei a caminhar sozinha pelas redondezas. No início caminhei pela paisagem tocada pelo homem, pelos campos agrícolas, pelos caminhos perto dos ribeiros. Apreciava como os campos eram lavrados, quais as sementeiras. Interessei-me pelos animais por ali criados, achei piada aos patos e gansos que me seguiam quando passava, aos cavalos que me acenavam com as longas crinas e relinchavam satisfeitos. Queria mais, mais natureza intocada, pois apercebi-me que o Homem domina tudo, açambarca, domestica, contamina…como um vírus.
Um dia caminhei para mais longe. A cidade ficara para trás, sob o sol quente de abril, medrosa do futuro que a aguardava. Brilhavam as casas caiadas, os prédios envidraçados por janelas. As aves afoitavam-se para fazerem os ninhos, encaracolavam-se no céu os fumos das queimadas das limpezas dos campos. Olhei para trás, já na ponte que cruzava o ribeiro, parei e repeti três vezes “caminho de encantar, caminho de encantar, leva-me onde a minha alma ficar”, pois lembrei uma lenda que se contava sobre aquela mesma passagem. Perdi o tempo em que caminhei, sem, no entanto, me cansar e dei comigo na orla de um caminho atapetado de cascalho miúdo e muita vegetação rasteira. Como num amplexo vegetal, ali estavam imensas árvores de porte imponente, saudando-me. Fui-me adentrando pela floresta que me convidava num sussurro impercetível e que eu ia descodificando a cada vez que por lá voltava. Sim, voltei inúmeras vezes, as pernas levavam-me sem ter de pensar. Ali sentia-me desprender da realidade, do medo, do vírus, deste corpo que me limitava. Envolvia-me uma serenidade, um acarinhar que não sei descrever. Com o tempo, aprimoravam-se os meus sentidos, despertavam como se tivessem estado presos num longo sono. Conseguia enxergar mais longe e definido, nas sombras e no crepúsculo. Ouvia mais nítido cada som da natureza, distinguia o cantar dos pássaros sem nunca ter sabido os seus nomes. Os odores pareciam-me perfumes. Pela manhã cheirava ao fresco do orvalho que aviva o musgo, às folhas secas em decomposição, pela tarde com o calor do sol cheirava a verão, às cascas das árvores acalentadas pelos seus raios, cheirava a urze e a alecrim… não precisava falar. Sim, falar, esse sentido tão humano, que nos distingue dos demais, dos outros seres. Eu não proferia palavras, deixava divagar os pensamentos ou antes, os sentimentos pois não precisava pensar, somente agradecer por me ser permitido desfrutar destes locais que nos dão tanto e sem pedirem nada em troca. Não teria de pagar para poder caminhar pela floresta, por me sentar e usufruir daquele imenso bosque onde a única melodia era o cantar dos pássaros e o restolhar das folhas embaladas pelo vento. Poderia banhar-me no ribeiro, nesse correr vagaroso de água límpida, doce e murmurante calma. Escolher um seixo polido e guardá-lo como uma joia, uma relíquia da qual desconhecia o passado. E não havia o vírus nem o perigo de me infetar. Vivi assim num embalo que me renovava dia-a-dia. Parava para a vida lá fora. Quando regressava a casa, voltava rejuvenescida. Iluminada pela ancestralidade daquela floresta, contava histórias aos miúdos, contos nascidos graças à inspiração que me era dada pela natureza.
CONTINUA (ver aqui a 2ª parte , ver aqui a 3ª parte)