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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

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Escrita ficcionada

A Cripta

25.01.21, Olga Cardoso Pinto

a cripta.jpg

Os muros de granito escondiam dos olhos, dos mais atentos transeuntes, o solar ensolarado que se insinuava numa paisagem rural. As heras que o cobriam cresciam desordenadas sem serem podadas há muito. As pedras centenárias ganhavam musgo viçoso envolvendo-as num tapete fofo e húmido, o cheiro era forte e acre... Jonas, em bicos de pés, espreitava agarrando-se ao muro escorregadio tentando equilibrar-se precariamente numa das pedras salientes do velho paredão.
“Sim senhor, aqui está uma casa senhorial que adorava comprar!” — pensava enquanto tentava abarcar num só olhar as cercanias.
O solar tinha um brasão imponente que encimava a porta principal, a larga escadaria conduzia o olhar para ele. Jonas franzia os olhos tentando descortinar as figuras que o compunham, era difícil perceber pois o tempo encarregara-se de o embelezar de líquenes e escurecer os pormenores. O jardim frontal perdia-se de vista, dava a sensação que contornava a casa. Estava em mau estado, não havia flores e as ervas tomaram conta dos canteiros e pérgulas. As árvores que outrora talvez emprestassem ao lugar perfumes, frutos e sombra, pareciam espectros. Um lago surgia tímido no meio do jardim e no centro dele uma estátua de mulher com três faces segurando um enorme livro. Jonas tentou dar a volta ao espaço, mas o terreno pertencente à mansão era abruptamente interrompido por campos baldios e pequenas hortas, o gradeamento enferrujado continuava para o interior tendo o campo como vizinho. A placa "vende-se esta propriedade" estava já um pouco decrépita e passava despercebida, demonstrando que há muito a mansão esperava por ser comprada.
Jonas marcava no telemóvel os números da placa, andando de um lado para o outro no passeio, ansioso que a sua chamada fosse rapidamente atendida. Após alguns segundos passou a mensagem e Jonas aborrecido desligou o telefone. “Bolas!” — praguejou em pensamento, voltou a tentar e o resultado foi o mesmo. Deixara o automóvel perto dali, mas algo o impedia de voltar, sentia-se atraído pelo lugar e revoltava-se por não conseguir que atendessem o seu telefonema. Relutantemente caminhou para o carro, olhando por cima do ombro para a casa e o velho muro que deixava para trás...

 

Excerto do romance "A Cripta" por Olga Cardoso Pinto

 

 

Mistérios contados

13.01.21, Olga Cardoso Pinto

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"Quando a noite ia alta, todos dormiam, só os grilos aprimoravam os acordes. Passos suaves, seguidos de algo deslizante, entraram no quarto de Glória. Ela moveu-se na cama mudando de posição. Um pó quase invisível pairava no ar. Sobre o seu corpo relaxado, um vulto debruçou-se tocando-lhe no rosto, a menina mexeu-se sem, contudo, acordar. Seguidamente, o vulto saiu e entrou no quarto de Tobias. O menino estava deitado de barriga para cima, com um dos braços sobre a testa, a sua forma peculiar de dormir. Novamente o pó, agora soprado, bailava sobre a criança. A misteriosa figura acariciou-lhe o braço e ele sentindo as cócegas sorriu. A porta encostara-se com a saída do furtivo vulto. Tobias acordou e sentou-se na cama, sentindo um aroma conhecido, esfregou os olhos e ficou sentado mais um pouco, ainda naquele estado de assombro límbico entre o sonhar e o despertar. Nos lábios bailava-lhe a primeira palavra dita neste mundo, o nome do seu primeiro amor, da primeira mulher da sua vida: «Mãezinha?»."

 

Excerto do conto "O segredo da velha casa" por Olga Cardoso Pinto

 

 

A Paz

Conto

09.01.21, Olga Cardoso Pinto

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Era uma vez um menino que se acercou do avô e lhe perguntou o que era a Paz. O idoso conhecedor da guerra que os Homens fazem pelo poder e pelo domínio, respondeu de olhar doce bebendo a expressão do neto:
— Sabes meu pequeno, a Paz é muito mais do que não haver guerras. A Paz é como uma árvore…
— Uma árvore, avozinho? Como assim?
— Sim uma árvore. A árvore antes de o ser terá de ser semeada. A semente lançada à terra, para germinar terá de ser cuidada em bom solo, com luz e água, mas isto só não chega…terá também de ser muito acarinhada com constantes cuidados, mesmo quando já for uma árvore majestosa para que não perca o viço e a vida. Assim será uma árvore frondosa onde possa abrigar na sua sombra muita gente, animais e outras árvores.
— Ahhh! E mais avozinho?
O velho sorriu prevendo que a conversa não ficaria por ali. Então prosseguiu:
— A Paz também reside em cada um de nós, sabes? — face ao espanto que se formava nos olhos da criança, colocou o dedo indicador no tenro peito, mesmo onde batia o seu pequeno coração. — Sim…reside aqui. Deverá germinar, assim como a árvore, em todos os corações.
O rapazinho arregalou ainda mais os olhos por tal revelação:
— Mas como pode isso ser?
— Oh sim, pode. Quando te deitas à noite e adormeces feliz, sem pesadelos ou preocupações que te consumam? Isso é Paz. Quando no final do dia sentes que te superaste na tarefa ou não causaste nenhum mal contra um amigo ou familiar, contra ti próprio ou à natureza e aos animais? Isto também é Paz…e sabes meu pequeno, aquela calma que sentes quando o teu ser está preenchido de felicidade? Isso é a Paz.
A criança suspirou e de sorriso preso na boca rosada, abraçou o avô e assim se deixou ficar por longos momentos.
— Sabes avozinho? Acho que oiço a Paz aqui no teu coração! Ouvi-lo assim a bater tão forte como um tambor contra o meu faz-me sentir feliz e ser feliz é ter Paz!

 

Este conto, aqui publicado na íntegra, foi redigido para o Desafio da Paz a convite da Ana de Deus, em dezembro de 2020.

 

Versos para um diário

08.01.21, Olga Cardoso Pinto

o diário.jpg

O Diário


Numa letra redondinha escrevo histórias e versos de amor
encho-te do meu ser, de confidências, de desejos e de cor
lavro as páginas em branco como se fossem solos bem reais
desfio nelas o correr dos sonhos em conversas triviais
afiguras-te como amigo, confidente sem oratória
guardas meus segredos nessa fina e numerada memória
quantos dias, quantas horas, passo eu a escrevinhar
registando o que de mim fica para mais tarde recordar.

 

Foto: manualidades para uma capa de diário/agenda muito especial

A estrela de Natal

Um conto de Natal em tempo de Reis

06.01.21, Olga Cardoso Pinto

a estrela de natal_conto.png

Hoje celebra-se o Dia de Reis, o dia em que os Reis Magos, guiados por uma estrela, levaram as oferendas ao menino Jesus. Dia especial para a troca de presentes, ainda em uso na nossa vizinha Espanha e em tempos idos também em Portugal. Por tal, e com muito carinho partilho em jeito de presente para todos os que aqui me visitam e em especial para a minha querida Isabel, do blog Pessoas e Coisas da Vida, este meu conto de Natal que estava em dívida.

Minha amiga Isabel, agradeço-te o convite para participar neste desafio dos contos de Natal, grata pela tua amizade e carinho, espero que gostes.

Bjs

 

A estrela de Natal

O cómodo estava agradável. Na lareira crepitava alguma lenha, incandescente, libertando o seu calor para a divisão e ruborizando o rosto miúdo que o fitava fixamente.
— Mãe?
— Sim?
— Amanhã é dia de Natal…
— Pois é. Teremos de levantar cedo para irmos à missa.
O rapaz trocou a perna onde se apoiara. Ainda com o tronco semideitado no colo da mãe, voltou a questionar e agora virando a face para ela.
— Temos mesmo de ir à missa? Não me apetecia, está tanto frio…
A jovem mulher, poisou a peça que tricotava no cesto e com as pequenas mãos, ásperas e nodosas, pegou no rosto do filho e respondeu:
— Meu querido, o nosso Natal sem a missa não é Natal, percebes? Não te posso dar nada. Nada temos, nem um doce especial, nem um brinquedo diferente…nada. Se não formos à missa será um dia como outro qualquer.
— Mas mãe, tenho-te a ti e tu a mim…não precisamos de mais nada! — respondeu endireitando-se e fazendo com as mãos um meio arco.
A mãe puxou-o para si e abraçou-o, escondendo as lágrimas que teimavam em brotar dos olhos tristes.
Lá fora, distante, no campanário soavam as últimas badaladas da noite, eram onze horas.
O lume voltou a queixar-se através dos estalidos e das faúlhas que subiam ligeiras pela chaminé, quebrando o silêncio que se fizera.
— Vá, está na hora de te deitares.
— Posso ficar mais um bocadinho? Faço-te companhia e tu contas-me uma história.
— Já nem sei que história te contar. Se eu te pudesse oferecer um presente de Natal, o que gostavas que fosse?
— Ah, eu gostava que fosse um livro. Daqueles grandes com muitas folhas! Sobre o mundo, sobre as estrelas…
— Pois sim, e logo desses…
A mulher voltou a pegar no que estava a tricotar, olhou de soslaio o rapaz. Era tal e qual o pai. Curioso, magro, trigueiro, de cabelo fino e escorrido para o rosto, emoldurando aqueles olhos amendoados que bailavam entre o castanho e o verde conforme a disposição do pequeno.
Ela compadeceu-se pelo filho. “Deixá-lo ficar mais um pouco, afinal é noite da consoada, será diferente como ele quer. Já tem oito anos.”
— Vá senta-te aqui no mocho. Vou contar-te uma história sobre a viagem de Simão.
O rapaz nem se demorou, sentou-se logo no pequeno banco entre a mãe e a lareira. Se sono tivesse, este espantou-se mal ouviu da boca da sua mãezinha a palavra «história» e a reboque dela a palavra mágica «viagem». De olhos arregalados e sentidos apurados para todos eles convergirem para o que ali se iria desfiar.
O tempo passou sem o menino dar conta, só quando soaram as badaladas da meia-noite acompanhadas pelo toque da missa do galo, ele despertou do quase transe em que se encontrava, preso às palavras que como fios de prata saíam da boca da progenitora. Também, infelizmente, a história terminara. O rapaz ainda envolto naquela fantasia, levantou-se e foi preparar-se para deitar. Seria um sono repleto de sonhos, de viagens alucinantes, de aventuras intermináveis, pensou a mãe ao observá-lo já meio adormecido cambaleando para a enxerga.
Ao longe ouviam-se cães a ladrar. No telhado da humilde casa algo se movimentava, arranhando amiúde, com certeza seria uma coruja que se alimentava. O gato do rapaz arrebitou as orelhas, acabando por levantar a cabeça atento ao que no exterior se passava. Deixou o confortável lugar onde estivera a dormitar e correu para a porta a miar.
Bateram à porta. Um bater seco que fez estremecer o ferrolho enferrujado. O gato volteou sobre si inquieto.
“Quem será a esta hora?” pensou a mulher, aconchegando o filho na cama, este despertou do torpor.
— Quem será, mãe?
— Vou ver. Deixa-te estar deitado.
Mas o rapaz curioso, saltou da cama e foi espreitar, ficando junto à ombreira do quarto. Viu a mãe, amedrontada junto à porta, perguntar quem era. Uma voz abafada respondera, mas a mulher voltou a perguntar e a outra voz voltou a responder:
— Peço uma côdea para acalmar a fome.
A porta lá foi aberta, à cautela. Viviam distantes do povoado e àquela hora não havia vivalma por ali, mesmo nesta noite especial.
O luar cru entrou seguido pelo vulto. O menino estremeceu. “Quem seria?”. O gato miou e seguiu-o cheirando.
A figura corcovada entrou arrastando os pés, trazendo consigo o frio da noite, o desconhecido e o medo.
— Entre. Pode aquecer-se junto à lareira.
Ao rapaz ia, aos poucos, apresentando-se a ideia de quem seria - uma mulher idosa, com dificuldades em andar, com frio e com fome. Condoeu-se com a condição do ser humano desconhecido que lhe entrara em casa na noite da consoada, véspera de Natal.
Sem ninguém lhe pedir nada, foi ao armário da cozinha e retirou de lá a saca de pano onde guardavam o pão, depois voltou a meter o bracito fino no armário e tirou um chouriço e dois ovos. A mãe lançou-lhe um olhar que lhe perguntava o que estava a fazer? Numa azáfama desenvencilhada foi ao quarto e trouxe o seu cobertor de lã, pesado, mas quente e colocou-o sobre as pernas da idosa.
— Agora vou fazer-lhe os ovinhos e aquecer o chouriço!
A mãe atónita com tanta desenvoltura, lá aqueceu também o caldo que fizera para o jantar.
Quando se sentou à mesa, após um momento ao calor, a idosa recuperara as cores normais de um rosto velho, quebrado pelas rugas da vida. Retirou o capote carcomido e andrajoso. A mulher estava imunda. A cabeça coberta por um lenço que outrora fora colorido, estava agora desmaiado e manchado, tal como os cabelos que lhe fugiam para o rosto. As mãos engelhadas como a face, tinham dedos compridos e tortos que ela dobrava como exercitando-os para deles se servir. As roupas esburacadas, quase sem grande préstimo contra aquele frio, exalavam um cheiro nauseabundo. A mãe do rapaz sentiu repulsa, mas era um ser humano, podia ser um membro da sua família, podia ser ela dali a uns anos.
O rapaz sentou-se à mesa perto da velhota. Intrigado pela sua presença na aldeia, o que faria ela por ali.
Como adivinhando-lhe os pensamentos, falou assim:
— Venho de muito longe. Já nem sei há quantos dias caminho. Ninguém quis dar-me guarida, nem aqui na aldeia. Até soltaram os cães para correrem comigo. Na porta da igreja todos me olharam de lado e mandaram-me embora. Só vós me abristes a porta…
O rapaz prendia-se no enleado das suas palavras. A boca remexia-se ora para falar ora para comer ao mesmo tempo. Num desses intervalos, reparou que lhe faltavam dentes, fazendo com que os lábios se metessem pela boca dentro quando ela comia e falava. A idosa causava repulsa, porém quando olhou para o rosto do menino ele pôde ver aqueles olhos celestiais, de um azul cerúleo que nem a natureza consegue produzir.
“Quem seria aquela mulher?” pensou, cravando nela a sua atenção minuciosa.
A velha sorriu e piscou-lhe o olho, ele estremeceu.
A mãe do rapaz aqueceu na lareira um pouco de água para a idosa se lavar, conduzindo-a para o pequeno quarto onde dormia com o filho. Antes de entrar, a velha senhora retirou do bolso de um casaco de lã algo que depositou nas mãos da criança.
— Toma conta dela, tem cuidado, hein?
O menino sentiu aquele corpo fofo e quente que se aninhava na concha das suas mãos emitindo um som agradável. Levantou uma das mãos e rebrilharam-lhe os olhos quando viu o pequeno pássaro, branco, alvo como a neve que cobria os caminhos em volta da casa.
Maravilhado com o minúsculo ser que nas suas pequenas mãos se aconchegava, foi sentar-se à lareira com ela dormitando neste ninho feito de si. Assim ficou por momentos, enquanto a mãe ajudava a idosa a fazer a sua higiene.
Quando ambas as mulheres voltaram ao cómodo, encontraram o rapaz já nos braços de Morfeu e a ave nas suas mãos. As duas almas, de alva inocência, tinham sucumbido ao sono retemperador vivendo em sonhos as mais inimagináveis aventuras.
A velha acabou por se deitar na enxerga acompanhada pelo gato, e a mãe adormeceu na cadeira de baloiço junto à lareira e do filho.

A manhã raiava. O galo madrugador cantava a plenos pulmões. A neblina pairava rente ao solo, fumegando no ribeiro e no focinho do gado pastando pelas ervas enregeladas. Fazia-se o despertar da aldeia para o dia de Natal, que nascia frio, cortante como gelo.
A cozinha estava quente, a lareira aquecera toda a noite o parco lugar. Na mesa já estava o repasto para o desjejum, antes de irem à missa. A mãe dispunha os últimos pedaços de queijo de cabra, o resto do pão e alguns ovos cozidos. O rapaz trazia a sua malga de leite quente que seria partilhada pelos três.
A mulher chamou pelo filho e deu-lhe para as mãos um embrulho, depois beijou-o e disse-lhe:
— Feliz Natal, meu amor! — ele sorriu e desembrulhou o presente. Eram umas meias tricotadas, aquelas que a mãe estava a fazer na noite de consoada.
A velha vinha com outro ar ao sair do quarto, parecia até ter menos idade e menos rugas. Porém, ainda arrastava os pés como se algo a prendesse a uma enorme corrente de ferro, pesada para aquele corpo curtido pelos maus dias da sua vida. Sorriu para os seus benfeitores. Acariciou a cabeça do menino quando ele foi dar-lhe os bons dias, trazendo o passarito nas mãos. A ave ao vê-la voou ainda de forma desajeitada e foi poisar-lhe no ombro.
— Oh, já voas, é? Bem me parecia…
— Parece estar mais desenvolta. Esteve doente? — perguntou o rapaz curioso, afagando as penas da pequena ave.
— Encontrei-a quase morta, caída na neve.
— Pobrezinha! Teve sorte em ser encontrada por si. — Observou a mãe, achando estranho haver ainda aves de ninho em pleno inverno.
Sentaram-se para comer. O menino acomodara-se entre as duas mulheres e aproveitou para apreciar melhor a idosa. Já não cheirava mal, o que lhe agradou. Trazia vestido uma camisola da mãe, que até lhe ficava bem, combinava com os seus olhos. O cabelo descoberto estava penteado em trança, era tão branco como o pássaro, sem fios cinzentos nem de outra cor. O rapaz estava admirado como a senhora lhe parecia diferente, embora os olhos mantivessem o brilho, a extraordinária cor e expressão celestial.
— E tu rapaz? Dormiste bem? Obrigada por cuidares da minha ave. — Elevou a mão e deu algumas migalhas ao passarinho que gentilmente lha debicava. Ficou a admirá-la, embevecida na sua singularidade.
— É linda, não é? — perguntou sem dela desviar os olhos.
— Sim, é muito bonita. Sobreviverá ao inverno?
— Se for cuidada com mimo e amor, sim. Sobreviverá. — Acabou por sorver o resto do leite, limpou a boca e pegou na mão do menino que a deixara poisada sobre a mesa distraído na sua apreciação. Ele deixou ficar a mãozinha, sem se importar com o toque morno da velha desconhecida. A mãe estava encostada à banca, curiosa pelo comportamento do filho, tão avesso a estranhos.
— De onde a senhora vem? Como se chama?
A velha sorriu, um sorriso desdentado, porém bonito, os olhos tornaram-se mais cintilantes.
— Ahh. Venho de muito longe…viajei pelos elementos todos.
— Como assim? — questionou o rapaz boquiaberto, não conhecia ninguém que o fizesse.
— Vim do outro lado do mundo, vim pelo ar. Visitei terras, países e continentes. Cruzei mares, rios. Com os pés em terra, galguei montes, planícies e desertos…
Os olhos do menino nem pestanejavam de assombro. A mãe sentara-se à mesa, de pano da loiça nas mãos, sem acordo de si só para ouvir o que a idosa tinha a contar.
— Mãe, parece a história de Simão!
— Simão!? — perguntou a velha sorrindo. — E vocês moram aqui só os dois? O teu pai, meu pequeno?
O rapaz baixou os olhos e estremeceu como se lhe tivessem tocado numa ferida. A mãe olhou o rosto da idosa e encolheu os ombros. A criança respondeu tristonha com voz sumida:
— O meu pai está longe, talvez perdido. Não sabemos o que é feito dele.
A ave como entendendo, voou titubeante para a sua cabeça. Ele pegou-lhe com extremoso cuidado e deu-lhe um beijo, não se apercebendo do que fizera. A idosa sorriu e respirou fundo, pegou-lhe no queixo pequeno, bem torneado e com uma matreira covinha e virou-lhe o rosto para ela.
— É uma pena, meu querido, é triste. Todos perdemos algo nesta vida. Tens a tua mãe e ela tem-te a ti, não estás só no mundo.
Levantou-se a custo, fazendo intenções de partir, começou então a reunir os seus ralos pertences.
— Fique o dia connosco. É dia de Natal, ninguém o deveria passar sozinho. — Pediu a mãe do menino.
— Fique, por favor, fique. Mas ainda não nos disse o seu nome… — reforçou o rapaz agarrando-se às suas mãos.
A velha sorriu, em jeito cansado e acedeu. Sentou-se na cadeira de baloiço e respondeu fixando os olhos na criança:
— Estela, é o meu nome. Chamam-me Estela da Manhã.

O dia ia avançando numa feliz convivência. Conversas, histórias e lembranças foram desfiadas pelos três, parecendo que conheciam há muito a idosa senhora. Como uma família tinha tão pouco e tanto para dar – alimentos, companhia, cuidado, bondade e amor!
O menino bebia as histórias e relatos da idosa, puxando cada vez mais por ela numa insistência curiosa de saber e aprender. Ela de bom grado e até felicíssima partilhava as suas vivências. Quando o dia aqueceu, após o almoço, foram dar um passeio pelas redondezas. A pequena ave voava à sua volta, mais confiante, poisando ora na velha ora na criança.
Quando voltaram a casa o sol estava no fim de mais uma viagem pelo firmamento. O menino foi o último a entrar em casa, deixando-se ficar a apreciar o adeus breve da estrela. Quando entrou, reparou que a velha mulher não parecia estar tão corcovada. Fez por se sentar junto a ela quando a mãe já dispunha na mesa o caldo que tirara da braseira. A idosa sorriu-lhe e deu-lhe o pássaro para as mãos.
— Dá-lhe de comer. Ele precisa de crescer são e forte, como tu.
— A senhora parece mais nova…— reparou o rapaz, mirando-lhe o rosto e as mãos. Ela voltou a sorrir.
Quando chegou à hora de se deitar, o menino pediu licença para entrar no seu quarto, onde estava a idosa já acomodada na cama. Com veemência entregou-lhe um embrulho de papel pardo. Eram as suas meias tricotadas pela mãe, o seu presente de Natal que agora seria da senhora. Ela agradeceu e beijou-lhe a face.

A noite caiu gelada. O céu encobrira-se de nevoeiro. O dia de Natal findara. Mais uma vez a idosa ficou para dormir, partiria pela manhã.
O rapaz teve uma noite cheia de sonhos, de efabulações fantásticas nas quais a velha era a personagem principal, mas jovem na plena força da vida. Sonhou até com o pai desaparecido, mal se lembrava dele e, no entanto, sonhou que ele lhe pegava pelos braços e ambos rodopiavam no alto da serra, voando seguidamente como dois pássaros.
Acordou levemente com um ruído. Soergueu-se e viu um vulto que saía pela porta. O céu ainda estava escuro. Levantou-se e deu uma espreitadela para o quarto. A cama estava vazia, a trouxa que a idosa trouxera também não estava lá. Quem saíra fora ela. A mãe continuava a dormir, não dando conta de nada. De um pulo pôs-se na soleira da porta, ainda chamou, mas ela foi descendo sempre em direção ao povoado. O dia não tardaria a nascer. Tristonho lá entrou, mas ainda esperançoso que a idosa voltasse para trás, tornou numa última mirada e então viu. Viu algo que o deixou desconsertado, incrédulo…Estela desmaterializava-se e sumia como uma faísca feita pó, feita brilho em direção ao céu fixando-se lá como uma estrela brilhante, pulsando a cada batida do seu coração. Ao longe, o arrebol do novo dia principiara. Voltou para dentro, assombrado com o que vira embora triste, tinha acalentado a esperança de que a senhora ficaria a morar com eles. Fechou a porta devagarinho para não acordar a mãe.
Estava a digerir os últimos momentos, quando ouviu um pássaro cantar, num trinado que nunca ouvira por ali. Seria o passarito branco? Abriu a porta desejoso de o ver acompanhado pela idosa, quando o fez viu um homem alto, magro, trigueiro, de cabelo fino e escorrido para o rosto, emoldurando os olhos amendoados, que vinha a subir a ladeira. Sorria para ele e nos últimos momentos correu e tomou-o nos braços, envolvendo-o no seu calor.

 


FIM

 

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