Uma fotografia é uma memória suspensa no tempo, num lugar que fez parte de um momento. Esta encerra boas memórias, embora não tendo conseguir captar a essência especial que aqui ainda perdura, traz-me à lembrança a tarde que variou de chuvosa a soalheira, o odor da terra quente beijada pela chuva, da vegetação tisnada pelo sol algarvio, a tepidez do mar e a sensação de paz e liberdade.
"O final da tarde chegava de mansinho, mas o sol ainda alto tornaria o dia no mais longo do ano. Lá longe, perto do rio, preparavam-se as fogueiras que seriam purificadoras para quem as saltasse e afoitavam-se as gentes no cozinhar da ceia para festejar o solstício de verão - não podiam faltar o peixe - esse ser do rio - o pão força para o corpo e o vinho dádiva da natureza e transformada pelos homens. Nabica carregava Brígida ao colo, a seu lado caminhava Dulce que levava na bolsa do cinto a foicinha de prata e no braço o cesto do ritual de colher as ervas medicinais – o manjerico e o visco, tinham-nas colhido ao nascer do dia. Ausinda, mais afastada por não conseguir acompanhar o andar das jovens mulheres, levava no seu cesto papoilas e camomila para queimar como oferta ao sol e a Endovélico, todas elas levavam ao pescoço um lenço amarelo tingido com cascas de cebola. Alegremente cantavam e juntar-se-iam às celebrações sob as copas dos carvalhos com o rio serpenteando por perto. A idosa apreciava à distância as duas jovens, queria-lhes como filhas, e naquele dia sentia-se feliz por ver Nabica, finalmente, a recuperar a sua vivacidade, o seu gosto pela vida e pela filha adorada! Iam as três animadas, embora Ausinda revelasse algum cansaço, pois fora um dia muito preenchido, como sacerdotisas celtas tinham iniciado as suas atividades dedicadas ao seu culto desde o nascer do dia. Cultuaram as divindades com oferendas e cânticos, em especial a Endovélico pedindo-lhe proteção e saúde, a Lug divindade solar que dá força à terra para gerar as culturas, a Atégina solicitando a sua bondade para com os solos férteis, a Nábia deusa das águas correntes para que estas não faltassem para a terra e a Sucellos para que protegesse a agricultura e as suas amadas florestas. De forma recatada fizeram as suas celebrações, sem sacrifício de animais, há muito que o tinham abandonado com receio de serem acusadas de heresia pela igreja e pelos vizinhos cristãos."
"...Acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim, como uma maré."
E cá estamos novamente no tempo delas! No tempo das cerejas carnudas e doces que explodem na boca melhor que rebuçados. Estas são transmontanas e carinhosamente foram colhidas pelos meus sogros para serem desfrutadas uma a uma, fresquinhas, deliciosas e sumarentas, viciantes e retemperadoras para estes dias quentes de junho. Ao saboreá-las, fico grata à cerejeira que tão delicioso fruto nos dá e lembrei-me deste poema de Eugénio de Andrade, dedicado à cerejeira em flor que maravilhosos frutos produz se o tempo e o cuidar o permitir.
A uma cerejeira em flor
Acordar, ser na manhã de abril a brancura desta cerejeira; arder das folhas à raiz, dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos o vento, a luz, ou o quer que seja; sentir o tempo, fibra a fibra, a tecer o coração duma cereja.
farias tudo de novo? Sonhos e projetos criados no éter da existência pura?
Se pudéssemos voltar,
voltarias?
Num salto quântico de insanidade ou infantilidade?
Se pudéssemos voltar
voltarias nessa forma de corpo e alma, num despojamento sem fingimentos
Voltarias a ser Tu?
Se pudéssemos voltar
eu voltaria
numa imperfeição para me talhares nas tuas mãos, retocares a minha essência no novo molde do teu toque e assim permaneceria eternamente
Se pudéssemos permanecer...
Para ouvir Linger (versão acústica), voltando aos anos 90 pela linda voz de Dolores Mary O'Riordan, vocalista dos Cranberries, que partiu em 2018, deixando o registo de inesquecíveis músicas para a posteridade e para recordar.
Haverá algo mais doce do que aquele abraço pequenino de braços tenrinhos, e beijos mais inocentes carinhosamente oferecidos, de uma criança? Especialmente aquela que nos deixa embevecidos pela sua existência?
Hoje celebra-se o Dia da Criança, para elas o meu mais sincero desejo é que sejam felizes, respeitadas, amadas e protegidas.