![IMG_3460_1.jpg]()
![]()
"Vou contar-vos uma estória sem tempo nem lugar. Perdeu-se no novelo dos séculos o pormenor que fazia dela uma estória pessoal. O tempo pode tudo e não pode nada. Pode curar e transformar, mas esquece e basta o sopro de novas vidas para que se perca o rasto poeirento das lembranças. Mas a natureza lembra, mesmo a mais ínfima lembrança deixa-a a vogar no cosmos…
Tudo começou numa manhã de primavera.
Estamos dentro de uma casa, antiga, arrumada. O sol entra pela janela da fachada frontal. Os raios brincam no soalho de madeira, num jogo de esconde-esconde com as sombras e as partículas que cintilam flutuando no ar.
De costas para nós, uma mulher de meia-idade apoia-se na ombreira da porta. O cabelo já com algumas cãs que lhe enfeitam as madeixas doiradas, está preso displicentemente num carrapito. As suas vestes são longas, denotam os anos vividos e remendados pelas sedosas mãos pequenas. Ela acena pesadamente. A luz do exterior, daquele sol que entra no conforto caseiro, não nos deixa ver a quem acena. Alguém que parte? Alguém que chega?
Aproximemo-nos. Agora quase de ombro colado ao dela, vemo-lo! É um jovem que também acena. O rosto triste contorcido num esgar, num sorriso forçado para a mulher que o desprende de si, num cortar de ligações feito cordão umbilical que perdura. Vai fardado, transformado em valente guerreiro, revelado por uma arma a bandoleiro e o cinturão que lhe cinge a cintura, ajeitam-lhe o destino.
Ela traz nas alvas mãos um lenço bordado, certamente por si para o enxoval. Junto ao fino rendado do linho as iniciais S e M, devotamente bordadas e rematadas por pequenas e cândidas flores. Com o pequeno lenço acena e quando ele lhe atira um beijo e não resiste volta atrás para a beijar, ela enxuga as lágrimas, essas pérolas que tristemente nascem dos olhos cerúleos quase céu, quase mar, quase destino deste filho que parte.
O abraço com que se prendem, com que desenlaçam os seus destinos, sabe-lhes a breve e a dor funda como uma facada.
— Adeus, mãe… — desprende-se ele daqueles braços-ninho, contendo os soluços quase infantis e de olhos marejados de água.
A mãe, de jeito suave, guarda-lhe dentro da casaca, bem juntinho ao coração, o pequeno lenço de linho. Colhe um mendinho ramo do azevinheiro e prende-o à abotoadeira. Dá-lhe um beijo na face imberbe e sussurra-lhe:
— Deus te guarde, filho meu! Vai…e que o teu anjo da guarde te traga de volta para mim…
Afastemo-nos para lhes dar privacidade, embora tentados a ficar pelo perfume a alfazema que se evola daquele belo lenço!
No canteiro, junto à frondosa janela, desabrocharam as graciosas flores brancas do azevinho, como querendo testemunhar a triste partida, guardando para elas a memória de uma primavera triste onde os pássaros cantariam por obrigação, o sol brilharia envergonhado e todo o esplendor primaveril ficaria embaçado pela mágoa desta mãe.
As estações foram rolando. O ano foi passando num desfiar atormentado. A mãe nada sabia do filho – se chegara, qual o destino? Ferido, onde estava? Morto – Vivo? Morria ela pela ausência de notícias, pela solidão a que se entregara. Da sua bela boca, de lábios finos e torneados, só as orações se assomavam. Naquelas pequenas mãos talhadas para o delicado labor do bordado, só o rosário as afagava num desfiar contínuo e persistente.
“Morto não estás…sinto-o no meu peito, no meu espírito…, mas onde estás?” — repetia constantemente. Saber de mãe é forte e douto, pois trouxe dentro de si o ser ao qual a sua alma está costurada numa fina e resistente filigrana do mais puro ouro. Se algum destes finos fios for puxado, mãe e filho sentem como picados pela agulha que os costurou."
...
Excerto do conto de Natal "Um ramo de azevinho", por Olga Cardoso Pinto
Para continuar a ler, abrir aqui
O porquê da escolha do título "Um ramo de azevinho": o azevinho é por excelência o símbolo do Natal, mas indo mais aos primórdios da nossa história - o seu uso remonta ao paganismo celta, onde era usado como símbolo de imortalidade, devido ao facto das folhas persistirem durante todo o ano, mesmo durante o Inverno.
![]()
"A guerra é um mal que desonra o género humano."
Fénelon (1651-1715) - escritor e teólogo francês.
![]()