"Glória ia sendo lentamente seduzida pela vida singela deste mundo rural. Durante o dia, aos poucos, ia esquecendo as lembranças que à noite teimava em guardar e a revisitar vezes sem conta, com o intuito de não as olvidar, arreliava-se até por esquecer um ou outro pormenor da antiga casa, da antiga rua e da escola. Contudo, nunca saíra das redondezas sozinha. Naquela manhã saiu decidida, depois de avisar o pai que ia num pequeno passeio. Não o confessava, mas o irmão era o causador de toda esta valentia inusitada. Decidira, também, investigar todo aquele espaço sem casas, sem povo, cheio só de campos, floresta e serras. Sentia uma pontada de vergonha por ter dez anos e ser tão insegura e nada valente como Tobias, um pirralho de cinco anos que já percorrera aquele infinito de espaço e liberdade. Tinha medo, receio do que pudesse acontecer-lhe. «Posso cair duma fraga, partir uma perna e ficar por ali e ser comida pelos lobos. E se aparece um Olharapo? Ou ainda a Maria Gancha?». Depois destes pensamentos, atirou com os caracóis arruivados para as costas, como um ato de brava segurança, tentando afastar o mau agoiro. As histórias da tia Rosário andavam a mexer-lhe com as ideias. Era tudo novo, desconhecido, misterioso por ali. Até os sonhos eram invadidos por estes seres desconhecidos, habitantes de lendas e histórias contadas por todos na aldeia, após a ceia, desfiadas à lareira. Certa noite, acordara com um ruído estranho no quarto, primeiro junto ao guarda-fatos e depois teve a sensação de que algo se escapuliu para debaixo da cama, deixando cair alguma coisa que retiniu. De manhã, exausta por não ter conseguido adormecer, tendo passado a noite hirta de medo por baixo da coberta, espreitou temerosa e nada viu, só pó e marcas de arranhões na madeira do soalho. Andou o resto da manhã a matutar até que perguntou ao pai se ali haveria ratos. O pai respondera-lhe que não, dentro de casa não havia, mas a tia dissera-lhe algo que a amedrontou «Se não são ratos, cuidado! Pode ser um Tardo!» e piscou-lhe o olho zombeteira. Existiriam semelhantes criaturas? Quando saía para o campo com os tios, sentia-se libertar daquele peso miudinho que a ruminava desde a morte da mãe, preenchia-se o vazio que sentia no peito.
O caminho era feito adentrando-se numa pequena floresta, depois atravessavam um rio, cuja ponte não se deveria olhar para trás, daqui seguiam por uma clareira estranhamente sempre verdejante e de onde se ouvia o correr alegre dos regatos. Pouco depois, retiravam-se do caminho desgastado pelo uso e entravam na terra lavrada, pululada de produtos hortícolas e mais distante as cortes onde pernoitavam as cabras e as ovelhas."
Excerto do conto O Segredo da Velha Casa, por Olga Cardoso Pinto
Conto cuja narrativa decorre nos anos após a 1ª Guerra Mundial, em Portugal. Conta a história de uma família que se refugia no campo, no Minho, em alternativa à vida citadina, para fugir da pandemia da gripe espanhola, da crise económica e social. Encontrar o equilíbrio de espírito e reconstruir os laços familiares, são os objetivos de um pai viúvo com duas crianças pequenas. Estas são arrebatadas pela vida singular da aldeia, e num mistério que habita a decrépita habitação. Será a imaginação infantil ou uma realidade alternativa que espreita, aguardando pela inocência e curiosidade dos dois irmãos?
Foto: vista para a Casa da Pequenina, aldeia A Pequenina, Vila Verde.
Para ouvir, enquanto lê: The Magic Fairies - David Arkenstone
O Outono é uma Mulher que se veste de tons ocres, laranjas, fulvos intensos. Adorna-se de belas joias naturais e desfila elegantemente, contagiando o mundo pelos caminhos que percorre. Recebe no colo e nas mãos as aves persistentes que teimam em ficar. Perfuma, com laivos de magia, cada recanto das cidades, vilas e aldeias; um perfume que só ela sabe destilar, de coração quente com pitadas de noz, pinha e musgo, as notas florais vêm das flores dos citrinos e para ambientar, um toque de azevinho. Depois queda-se, de pensamento longe, deixa-se embalar pelo vento e resguarda-se da chuva, envolvendo-se na neblina até ficar letárgica, em suspensão. A sua respiração é quase um sopro. Tudo é calma, num intervalo em que o tempo se suspende, a criação abranda num repouso... Shhhh, Mabon chegou...
"Ela colheu a pequena flor, de cor imperial, pondo-a nos cabelos, e bailou pelo caminho até à clareira iluminada pelo sol envergonhado por tanta beleza. Quando rodopiava, os seus olhos esmeralda encontravam os meus, e beijavámo-nos neste jeito inocente, como osculando as nossas almas... Os cabelos lustrosos, balouçavam no ar, parecendo um manto de folhas outonais. Eu amando-a ao vê-la assim alegre e bela como o açafrão bravo que colhera e enfeitava agora a orelha direita, contrastando com o rosto claro, pintalgado de marotas sardas, emoldurado pelo cabelo fulvo. A melodia subia no ar. Eu entusiasmado de a ver, dedilhava a rabeca com mais fervor. A clareira estava pejada de bailadores e tocadores de flautas, adufes, vielas, gaitas galegas, rabecas chuleiras... Brígida bailava, folgazeira, sem se cansar, a boca rosada sempre sorrindo e eu, pobre de mim, ansiava por abraçá-la, por sentir o seu perfume, o toque da sua pequena mão e o cheiro dos cabelos... sorte tinha aquela flor por poder enfeitar o que já de si era belo..."
Excerto do romance O Abraço do Freixo, por Olga Cardoso Pinto
Os nossos pulmões assemelham-se a árvores, o nosso cérebro parece-se com zonas rochosas desgastadas pelas águas, as nossas impressões digitais comparam-se com os anéis das árvores que registam a sua idade no interior do seu tronco, as palmas das nossas mãos colocadas ao lado de folhas de árvores, são semelhantes nos veios que as percorrem. O nosso sistema circulatório é quase como a imensidão de rios que correm para o mar. O simbolismo da Árvore da Vida, com os seus imensos galhos elevados para o céu e as suas prolíferas raízes que se estendem no subsolo, têm uma bela similaridade com a placenta que permite o desenvolvimento do bebé no ventre materno… e muito haveria para referir e comparar. Para terminar, em jeito de reflexão: quanto há em nós de Natureza? Teremos dentro de nós um ecossistema igual aos que existem no planeta Terra? Estaremos todos ligados por um entrançado de raízes invisíveis?
O ritmado da mão e da agulha no passajar, hipnotizava-a, tornava-lhe a mente dormente, aturdida para os ruídos exteriores, do cacarejar das galinhas e do zurrar dos burros. O bordado ia nascendo daquelas mãos pequenas de dedos curtos e arredondados, como um parto sem dor, todo ele florido. No aconchego do alvo linho, a jovem semeava belas flores coloridas. Torneadas filigranas de fio e seda, enroscavam-se na bordadura daquele lenço que ganhava sentimento e alma. Ana bordava afincadamente. A mente vogava num mundo só seu e dele, do seu amor que a iria deixar em carne viva de saudade, pois iria partir para longe, cruzar o mar infindo, o oceano como o boticário lho dissera; seria sim, um oceano de lágrimas saudosas pelo seu António. Tê-lo-ia em espírito, nas lembranças, no aconchego caloroso de uma recordação, de um beijo dado em surdina, no toque quente da sua mão. As lágrimas, como grossas pérolas que nunca usara, caíam-lhe no pano esquecido no regaço. Suspirou e voltou ao labor do bordado. As cores vivas nada condiziam com o seu sentir...pobre moça, sentir-se-ia como viúva se não fossem as cartas que iriam trocar. Voltou afincadamente ao bordado, sabendo que necessitava de bons pensamentos para atrair bons presságios, não queria que o destino se amarrasse a maus augúrios. "Livrai-o, Senhor, de mau infortúnio. Que caia sobre ele as Vossas graças. Protegei-o. Amén!". Repetia várias vezes até voltar a cair na antecipação da partida. Como há muitos séculos, Ana bordava para o amado o lenço que ele traria junto ao coração. Seria como uma eterna lembrança, um fio onde ambos os corações estariam atados pelas juras de amor. Ao bordar o lenço, bordava o destino em belos pontos e vivas cores para que o mal não atentasse, para que a sua vida lá longe, tão distante com tanto mar de permeio, não se perdesse nem esquecesse a sua amada. António partiria em breve para o Brasil, levando um pequeno saco onde arrumaria a sua jovem vida, de poucos pertences e ralas riquezas. Ia nesse oceano, como uma estrada, no bojo do enorme navio fazer-se à vida, tentar fortuna e um dia teria Ana ao seu lado. Ambos formariam uma família, cultivariam a sua horta e o seu jardim por onde correriam tenras crianças de risos felizes e bochechas coradas. De mão estendida, temerosamente, Ana ofertava o mais seu que lhe podia dar - o lenço por si bordado. Delicadamente lavado, engomado e perfumado de alfazema. Antes de lho passar dobrado para as mãos calejadas, beijou o nome que enfeitava o centro do pequeno quadrado de linho. As letras delineadas, feitas com ponto atrás, foram amorosamente orladas pelas flores e folhas em ponto cheio e corrente. António também o beijou, ficando com os olhos marejados ao ler naquele pedaço de tecido, naquele pedaço de amor: "António, Que o bordado do nosso amor te traga de volta para mim da tua Ana" Abraçaram-se longamente, sem se quererem separar, ficariam assim até ao fim dos tempos, mas o navio roncou, sobressaltando-os. O lenço, guardara-o António junto à pele. Seria ele o guardador das suas lágrimas de saudade, de tristeza e alegrias; seria ele que encerraria o cheiro de Ana, o toque suave e doce, a cor da sua alegria, a alvura da sua alma. O lenço, guardara-o António junto à pele, assim o faria a Ana quando voltasse. Só Deus o saberia quando...
Em pleno dia de outono agreste, as nuvens ameaçavam cair sobre nós, trazendo um quase dilúvio para a nossa caminhada. Um sol envergonhado até ia espreitando, tentando que o céu se descobrisse de azul... Lá fomos rompendo pela natureza, quase intocável, sempre banhada pela água que faz das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d'Arcos uma zona muito especial. Declarada zona húmida de importância internacional, abrange várias freguesias do concelho de Ponte de Lima, é uma zona rural onde o verde da natureza e a esmeralda das águas do rio Estorãos se unem à beleza rara e protegida das lagoas.
A união dos passadiços sobre os terrenos alagados, a vegetação ripícola, o cantar das aves, a vida que pulula nas lagoas, fazem deste lugar um retiro idílico, e até mesmo fantástico, para uma caminhada de outono. O local é cinematográfico, inspirador para escrever e pintar. Surgem-me na mente cenas fantásticas de criaturas etéreas de mundos irreais, de fábulas onde os animais são senhores e reis...a imaginação até me leva a acreditar que as aves falam de nós enquanto esvoaçam pelos altos ramos dos amieiros, freixos e carvalhos. As Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d'Arcos, são área protegida que deve contar com o nosso carinho, interesse e orgulho. Com 350 hectares, alberga em si habitats raros de elevada biodiversidade, fazendo dela um marco nacional para a educação ambiental e preservação da natureza.
Para todos nós, além da responsabilidade da sua manutenção e existência para que os nossos filhos e netos a possam desfrutar, é um lugar de contemplação e felicidade, longe do bulício citadino, da poluição e canseiras. Está ali pronto para o apreciarmos, sem custos de entrada ou utilização, apenas pede para ser respeitado e amado pela sua beleza e riqueza natural.