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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Quartas de Contos

Avelina III

28.02.24, Olga Cardoso Pinto

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AVELINA

(Continuação)

 

🍃

 


No tempo da aveleira ela deu os frutos, colhidos com tanto carinho pelas mãos calejadas que lhe ajeitaram a forma.
As avelãs que gerou eram graúdas em tons de canela, vistosas, dando à árvore um orgulho vegetal, competindo com os castanheiros que exibiam os ouriços prenhes de gordas castanhas luzidias.
Muitas avelãs foram deixadas, para os pássaros, para enriquecer o solo e para colheita tardia. Assim, enfeitada de frutos e rubras folhas, assemelhava-se a uma deusa pagã, a uma antiquíssima vestal. Um dos troncos encorpara, ganhando uma proeminência parecendo buchuda. As raízes pareciam braços onde pulsavam veias nodosas que se revolviam entranhando-se no fértil solo, como dedos, alimentando-se de nutrientes e sustentando o seu porte majestoso. António e Celeste admiravam-se, pois nunca tinham visto uma aveleira com tal aparência, talvez fosse de outras famílias até aí desconhecidas. Sim porque as árvores também têm família e sentem como gente, dizia Celeste. Agora entendia a conversa das árvores. O destino roubara-lhe a visão, mas dotara-a de outros sentidos mais apurados e dois deles cresciam viçosos como a aveleira – a intuição e a empatia, dizia que conseguia compreender as aves, os animais e as árvores. Sentia no seu coração e no seu espírito as conversas da Natureza, os seus murmúrios quando entrava na floresta, os seus espantos e cautelas, os segredos mais velados nunca ouvidos por nenhum humano.
— Sabes António, quando eles falam comigo sinto-me ser tocada nas entranhas, como sentem as mães quando geram um filho, ao sentirem-no rodopiar dentro de si, na seiva materna que lhes dá o alimento e a vida!
António abraçava-a. “Será que Celeste perdia o juízo? A falta da visão parecia estar a toldar-lhe o discernimento.” pensava o marido preocupado com estas revelações da esposa e com as constantes visitas à floresta, agora sozinha guiada somente por uma vontade e intuição desconhecidas.
Quando os últimos frutos foram colhidos, a floresta enfeitava-se dos tons quentes do outono que entrava magistral, manhãs e noites frescas e tardes ensolaradas. Preparava-se a Natureza para o longo suspenso em que viveria nos próximos meses, numa letargia como numa animação suspensa!
Celeste numa dessas alvoradas outonais acordou, ainda o negro da noite retirava de mansinho o seu diáfano manto dos céus. Sonhara com algo que a perturbou. Andara adoentada e o recolhimento era essencial para se curar, no entanto, tinha uma vontade desmedida de ir à floresta.
António sentiu-lhe o deambular pelo quarto, às apalpadelas para se vestir e o arrolhar do gato que acordara também.
— Onde vais tão cedo?
— Dorme que eu já volto!
— Se pensas que te deixo ir por aí fora, estás enganada, mulher!
Levantou-se, arrepiado pelo fresco da alvorada, vestiu-se assim a modos de atolambado e foi fazer o pequeno-almoço. O tilintar das loiças e dos utensílios vibravam nos ouvidos de Celeste, então, silenciosamente aproximou-se do marido e com jeitos refinados lhe retirou das mãos os instrumentos da fraca música.
— Deixa que eu faço. Vai-te lavar, tens aí água quente…
O sol despontava no horizonte, a neblina principiara a dissipar-se dos campos. A luz do astro que cedo madruga, doirava tudo em seu redor, como uma película de oiro fino, como uma talha doirada qual arquitetura barroca. O silêncio era audível, nada de pássaros nem bicharada de criação. Amanhecia num dia frio de outubro, o inverno ensaiava-se já ainda em pleno outono.
Celeste e António tolhidos nos agasalhos, investiam pela floresta onde os pássaros chilreavam de mansinho, em melodias afinadas cantadas uns em baixo outros em barítono lírico. A idosa parou e ficou à escuta, ela entendia estes cantares.
— Apressemo-nos António!
Celeste desenlaçou-se da mão do marido e apressou o passo em direção à clareira onde vivia a sua aveleira. Aí chegados, sentiram o local abrigado, aquecido como magia, os primeiros raios de sol incidiam em cheio no tronco buchudo da árvore. A neblina circundava a clareira como um anel translúcido.
O casal acercou-se da árvore, encostaram o peito, o rosto e as mãos nuas ao áspero tronco, sentiram então um estremecer leve que foi ganhando cada vez mais força num rufar ritmado. O corpo quente da árvore vibrava em sintonia com o bater dos seus corações. António e Celeste entreolharam-se e deram as mãos continuando a envolver a aveleira. A passarada agitada esvoaçava e chilreava amiúde, fazendo as copas lá em cima restolharem como se fossem rajadas de vento.
Um som seco fez-se sentir dentro da aveleira, como um rasgar de fibras lenhosas. Celeste tremia, o rosto roborizado transpirava e António sentiu a sua mão humedecida pelo suor da esposa. Não entendia o que se passava, ou antes era-lhe difícil compreender, mas o seu coração sabia o que estava a acontecer.
Quando o tronco se abriu numa fresta e odores frescos de madeira nova se escapuliram para perfumar a brisa, Celeste emitiu um som gutural. Um vagido de criança eclodiu e encheu de som o silêncio florestal! A idosa introduziu as mãos na pequena fenda que se abrira e retirou um recém-nascido envolto em heras e musgo viçoso! António, estupefacto, olhava a criança que era ajeitada no colo da idosa e que continuava choramigando pelo recente nascimento, pela luz que lhe cobria o rosto e o corpinho nu, alvo em cor e inocência.
Celeste cobriu-o com o xaile e beijou-o na boquinha rosada, proferindo uma oração, um encantamento que o marido desconhecia, ele mecanicamente tocou-lhe na pequena cabeça e abençoou a sua vinda a este mundo, depois ambos beijaram a menina que calidamente adormecera no colo da idosa mulher.
— Avelina será o teu nome. — proferiu Celeste virando a criança para a árvore como num ritual pagão e pediu a sua bênção e proteção, prometendo guardá-la e criá-la até o fim das suas vidas. António retirou uma pequena lasca do tronco e depositou-o junto ao minúsculo peito da criança, tal como um amuleto.
Lentamente as heras e o musgo que envolviam a criança, foram-se entrançando e recolhendo para ocultar a fenda por onde nascera Avelina.
No aconchego do lar, preparam um banho quente para a menina. António segurava-a cuidadoso, enquanto Celeste, extremosa, lavava o tufo de cabelo doirado, sedoso e ondulado. Quando o alvo corpinho, tenro e roliço foi afagado pela toalhinha do banho, António assombrado proferiu:
— A menina não tem umbigo!
— Claro que não, seu tonto! É filha da aveleira! Como poderia ter umbigo? Foi alimentada pelas heras, musgo e pela seiva da árvore. Esse laço humano que nos assemelha, não consta nesta criatura filha da floresta… — e beijou-a, incansavelmente, por todo aquele corpo imaculado que cheirava a mata, a plantas e a orvalho.
A dedicação e o amor de António fizeram-no esculpir um pequeno medalhão ornamentado com espirais, na lasca que retirara da aveleira. Estava, assim, concluído o amuleto que ligaria a criança à original progenitora.

 

CONTINUA

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Para ouvir, enquanto lê: The Memory of Trees - Enya

 

 

 

Fotos do meu álbum

Natus Vincere

27.02.24, Olga Cardoso Pinto

 

A escolha do subtítulo para este post Natus Vincere (Nascido para Vencer) é bem aplicado para a Natureza que determinadamente se refaz, que tudo invade, embelezando os escombros esquecidos dos despojos dos Humanos. Cobre de delicados rebentos florais e fofos musgos o que de robusto teve a vida dos Homens, as suas construções, a sua presença e o seu domínio. Os Humanos partem e a Natureza retorna ainda mais enérgica, pulsante de vida e força.

 

 

 

Quartas de Contos

Avelina II

21.02.24, Olga Cardoso Pinto

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AVELINA

(continuação)

 

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A tarde estava encrespada pelo frio cinzento. O vento bufava trazendo enregelada a chuva que principiara a cair, ainda miúda, daquelas nuvens escuras que pareciam odres enfunados.
— Logo à noite vamos ter muita chuva.
— Agasalha-te homem! Não queres ficar doente agora no princípio do frio, com esta morrinha.
Quando saíram do aconchego da casa, o vento esbofeteou-os e a chuva num cair leve e diáfano concedia à paisagem um efeito de velatura. Sentia-se na aragem o odor vindo do centro da aldeia onde eram assadas as carnes, as castanhas e cozinhados os cogumelos. Abriam-se os apetites com tão aguardado manjar.
Cada um com a sua capa, agasalhados para a caminhada, lá foram afoitamente pelo caminho até à floresta. António ia à frente com a candeia seguido pela mulher, ambos ainda novos, no vigor da idade e das pernas.
Quando entraram na floresta, a noite já se ensaiava. Ali, parecendo quase uma catedral, o resguardo era notório, a ventania sacudia somente a copa das árvores, restolhando as últimas folhas que restavam. As levadas cantarolavam no movimento da água gelada que embatia nos penedos, tal era a força do seu correr. O odor a húmus, adocicado pelo cheiro das folhas e frutos caídos desmaterializando-se, impregnava o ar. António aproximou-se da jovem mulher e enlevou-a pela cintura beijando-a ternamente.
— Para António! Vamos plantar a aveleira...
Assim o fizeram, quase de mãos dadas colocaram o jovem rebento no melhor lugar da clareira, onde poderia desfrutar do sol e da humidade consoante a estação. Desabrocharia sem o estorvo das sombras nem das pedras. Ajeitaram a terra fértil ainda com as mãos nuas e cada um deu-lhe um beijo, como uma bênção, tal como os pais dão aos filhos.
Ainda a jovem limpava as mãos ao avental, quando António a voltou a agarrar com jeitos ternos e quase sedutores.
— Amo-te Celeste!
— António, faz-se noite, está frio e devemos ir…
Ele não a deixou acabar, beijou-a e ela deixou-se levar por aquele calor feito de homem, doçura e paixão, pelas mãos que a tocavam numa candura, pelo sabor daquela boca que a beijava até à alma. Neste enlevo o amor aconteceu, natural, ingénuo e límpido.
Semearam uma árvore e o amor feito uniu-os à floresta, às árvores e seres que espreitavam o terno ato, selando aí o futuro que os aguardaria.

Celeste depositou a malga junto às demais e foi avivar o lume, o pensamento ia-se ocupando como o bruxulear da chama, ora tremeluzindo para ali, ora tremeluzindo para aqui:
“Tanto ano se passara e a aveleira ainda não dera frutos. Não chegara o amor que lhe deram? Ou ficara o rebento ciumento pelo amor que trocaram nessa noite, há tantos anos, na floresta?
No dia seguinte iria regá-la, vê-la finalmente! A aveleira não seria como ela, estéril, oca e seca.”

O dia amanhecera radioso, o sol espreguiçava-se vigoroso pelo céu azul, instigando a passarada numa cacofonia de melodias maravilhosas.
Celeste abriu os olhos, desperta pelos sons vibrantes que invadiam os seus ouvidos fazendo tinir cada músculo do seu corpo ainda inerte. Esfregou delicadamente esses olhos que eram os céus do seu António, onde ele se elevava num voo amoroso ao longo de tantos anos. Sentou-se na cama e, vagarosamente, colocou as pernas fora das cobertas, tentando alcançar os chinelos. Pestanejou, mas ainda os olhos estavam turvos, talvez pela noite dormida em sono profundo e pela repentina invasão de luz no exíguo quarto. Levantou-se e sem compreender, nada via. Tentou andar arrastando os pés, no entanto, foi embater na cadeira onde estava a roupa. António acordou, estremunhado, e perguntou:
— Que se passa?
Viu a mulher levantada e pensou que se preparava para vestir. Ela virou-se com os olhos marejados de lágrimas, o rosto contorcido de dor. Os cabelos soltos, ondulantes e quase vivos, cobriam-lhe os ombros como um enfeite. Levou as mãos ao rosto e proferiu numa voz entrecortada pelo choro:
— Estou cega António! Estou cega!
António caminhava apático em direção à floresta, levava na mão o regador em jeito displicente, balançando-o, fazendo chocalhar no seu interior o alimento para a jovem aveleira que frondosamente se erguia na clareira da floresta.
No seu pensamento bailavam a dor e a incompreensão. Como era possível a sua Celeste estar cega? Foram à cidade, dias antes, pois a anciã curandeira não dava conta da maleita. No hospital, um médico já avançado na idade, após longos exames àqueles celestiais olhos, finalmente vaticinou a cegueira incurável na idosa.
Celeste ficara uma sombra do que era, apenas em cinco dias a senhora perdera o viço, a alegria do viver e até os beijos do marido lhe sabiam a nada, aqueles beijos que lhe davam alento quando ela, entristecida pela infertilidade, remoía a sua condição.
Quando António, cabisbaixo, entrou na clareira, ouviu algo a que não prestou atenção. Olhava o céu de um azul invejável, o mesmo azul que banhava o olhar de Celeste, agora mortiço para os tons da vida e da Natureza. O sol irradiava luz e calor neste princípio de verão, aquecendo a bela árvore de tronco acinzentado que se dividia desde a base em vários caules hirtos e altivos. Crescera bem, robusta e elegante nesses seus braços que se elevavam para o céu. As folhas arredondadas em feminilidade, exibiam um verde intenso. No chão, ainda restavam os vestígios das encantadoras flores amarelas que, em cacho, a enfeitaram na primavera. Todos os anos, desde que fora plantada, era podada, ajeitada e mimada pelas mãos experientes de António e pelo cantarolar e pelas palavras doces de Celeste à medida que lhe ia limpando a caldeira e adubando sempre que necessário.
A aveleira tornara-se robusta, de porte majestoso, invulgar para uma árvore assim. António tocou-lhe e jurava ter sentido algo a retorcer-se no denso tronco. Deixou ficar a palma da mão, sentia o calor que dali emanava, talvez fosse o sol que a aquecia inclemente. Um bando de pássaros distraiu-o desta sensação. Numa alegre cantoria trinada, saltitavam de ramo em ramo na aveleira, como embalando-a.
“Seria desta que em setembro teria avelãs? Celeste gostava muito deste fruto. Dizia que era a árvore mais mulher que tinha visto. Na sua elegância de troncos, nos arredondados e serrilhados das folhas, como bordados, nas flores delicadas e dispostas como um ramo de noiva e no fruto que emergia do seu aconchego como brincos de dona rica. Ah, como gostava de a presentear com esta visão! Levar-lhe um cesto cheio de avelãs para poder comê-las assim cruas ou torradas ou, ainda, em creme que sabiamente ela faria para barrar o pão saloio. Para ele era no bolo, o doce do mel misturado com o paladar da avelã era a sua iguaria de eleição!”
Após regar a robusta árvore-arbusto, deixou-se cair junto a ela e, chorou copiosamente, neste seu jeito desabafou. Sentia tristeza pela sua amada Celeste não o ver. Quem me vai dizer “Olha-me essa camisa homem! Como está suja!” e também “Como estás bonito António! Gosto de te ver escanhoado! Pareces um fidalgo com esse rosto trigueiro enfeitado por esses olhos de avelã!”. E voltava a chorar, e voltava a lamentar-se numa voz rouca, sumida…
Pouco depois, calaram-se os pássaros, cessou o zumbir dos insetos e a aragem refrescante tocou-lhe o rosto molhado, ele sentiu um arrepio e elevou os olhos, o sol não o deixou ver, mas pareceu-lhe que algo pousara na aveleira e que de dentro dela voltou-se a revolver algo desconhecido.

— António leva-me à floresta! Quero sentir as árvores, sentir os cheiros, ouvir o seu roçagar provocado pelo vento. Leva-me contigo…quero ver a nossa aveleira.
— Mas tu não podes ver, minha querida!
— Posso marido! Vejo com os olhos que tenho nas mãos, nos ouvidos e no coração. Anda vamos!
Nesse dia, Celeste estava mais alegre, talvez o fim do verão augurasse boas coisas. Deu o braço ao seu António e partiram os dois numa caminhada lenta, conversando animadamente, quem visse não diria que Celeste estava cega.
Celeste entrou na clareira guiada pelo marido, desprendeu-se do seu braço, inspirou fundo e ficou à escuta. O silêncio imperou, nem uma brisa se ouvia. Ela como se fosse misteriosamente orientada, dirigiu-se em jeito decidido à sua aveleira sem tropeçar, ficando António estupefacto com tamanha desenvoltura. Foi tateando até encontrar os ramos mais próximos e apercebeu-se, encantada, que frutificava. Os pequeninos bolbos brancos como a neve já espreitavam sob o chapéu que os abrigava.
A mulher encostou o rosto ao tronco mais forte da árvore e abraçou-a demoradamente. O seu coração batia ritmadamente com o pulsar da seiva da aveleira. Mulher e árvore estavam em sintonia, ambas sem o sentido da visão, mas com o dom do sentir, os sentidos afinados partilhando aquela energia primordial, feminina e eterna. A árvore sentia a mulher que lhe dera o ser, a envolvera em cuidados delicados e ternura, desabrochara nesse amor e por isso ficara ali à espera de que ela a fosse ver, não com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma, do sentir. Agora compreendiam-se. Algo se contorceu no interior da aveleira. E Celeste sentiu! Sentiu esse algo, indescritível e inconfessável, aceitou e agradeceu em mente e coração. Era um mistério, um segredo…só ela e António saberiam.

 

CONTINUA

 

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Para ouvir, enquanto lê: The Secret Language of Angels - Lisa Gerrard

 

 

 

Novos Horizontes

20.02.24, Olga Cardoso Pinto

 

 

A meus pés encontram-se novos caminhos, muitas distâncias, ainda, para calcorrear a teu lado. Muitos horizontes se podem abrir se aceitarmos esta preciosa dádiva, esta paz de espírito, esta inspiração.

Ao teu lado necessito de ver a calmaria dos dias, a colheita em nossas mãos de horas a construir um retiro, onde aceitaremos a bondade do cosmos, do tempo e da vida.

Novos horizontes se revelam, desde a esperança e o sonho para a liberdade, basta abrirmos as asas ao vento e voarmos...num certo dia.

 

 

Fotos: Praia fluvial do Faial, Vila de Prado, Vila Verde. Mixões da Serra, Valdreu, Vila Verde.

 

Para ouvir e inspirar: The Moody Blues - New Horizons

 

 

 

Quartas de Contos

Avelina I

14.02.24, Olga Cardoso Pinto

Às quartas-feiras irei por aqui publicar, na íntegra, contos meus. Alguns excertos já foram partilhados, porém, agora achei que gostaria de os partilhar com todos aqueles que gostam de me vir "visitar" ao blog. Espero que apreciem, conto com os vossos comentários e agradeço, com carinho, as vossas leituras. Bjs

 

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AVELINA

 

Uma aldeia recôndita, enovela-se, aninhada entre a montanha e a imensa floresta. Um mistério que é também um milagre feito criança na vida de um idoso casal.
Um conto inspirado no percorrer de caminhos escondidos, onde cada descoberta é uma surpresa. Floresta, lameiros, pastos, ribeiros e levadas. O bucolismo de uma região fantástica onde a Natureza nos acolhe e acarinha no ancestral e verdejante Minho.

 

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Era uma vez uma aldeia esquecida pelo tempo. Desafiava a vida, encimada, numa branda serra onde os dias corriam vagarosos, desfiados pelas estações que alindavam os campos de produtos hortícolas e as árvores eram enfeitadas pelas frutas da ápoca, após uma eloquente profusão de cor em flor.
A aldeia vivia neste pacífico remanso, somente interrompido pelas tormentas do inverno que traziam as águas revoltas ao brotarem das mães d’água, afoitas para inundarem os campos e engravidarem as levadas ansiosas por chegarem ao rio, seu senhor, dissolvendo-se umas nas outras e deixarem-se levar por ele até àquele imenso desconhecido, de azul e sal.
Ao caminhar, descendo e saindo do aglomerado da aldeia, a vista alonga-se num verdejante pasto onde se refastelam gordas vacas. Perto do termo do abraço florestal, em local mais soalheiro como num quadro bucólico, uma pequena casa em ruínas. Consegue-se, sem esforço, imaginar o fumo encaracolando vindo da chaminé, reinasse o estio, calor ou gelo, nesta moradia que ainda se ergue humilde na sua pequenez granítica. Outrora, coroava-a um jardim repleto de flores coloridas, de pequenas árvores de fruto ajeitadas, um poço e algumas galinhas que esgravatam a terra escura. Dentro deste jardim fresco e pintalgado de variadas paletas, a casa fora habitada por um casal em que a cinza do cabelo e os traços das rugas definiam qual a distância percorrida no caminho da vida. Viveram o desfiar dos dias harmoniosos e continuamente apaixonados pelo amor que os uniu em tempos, fortalecido pelas alegrias, experiências e desventuras também.
A porta da casa, quase sempre aberta e escancarada para a vida, mostraria duas versões da mesma realidade: uma para o exterior - campestre e verdejante, e outra para o aconchego mimoso do seu interior.
A singela habitação rústica, noutros tempos, exibira uma beleza irrepreensível à semelhança dos seus ocupantes. Embora um pouco decrépita e delapidada da sua robustez, à moradia ainda se podia chamar de lar, porque no seu íntimo reinava a pacatez do lume brando. Sobre a pedra do lar descansava o pote de três pernas, envolvendo o local de reconfortantes odores oriundos do estufado de carne com hortaliças e feijão, borbulhante e fumegante à espera de ser apreciado numa malga de barro, em companhia de um pedaço de broa e por um copo de vinho verde.
Um arrastar de pés ouve-se pelo modesto alpendre e a voz baixa, mas de trinar suave, chama por um gato, este saracoteando-se vagarosamente, vem respondendo à chamada.
— Vá anda lá, toma…pois é, andas por aí, mas quando te cheira ao estufado és ligeiro como um lampo!
— Rinhauuu! — mia o gato amarelo, roçando-se nas pernas da mulher, acocorada dispondo na lata uma porção generosa da sua comida.
— Gato de luxo! A comer assim não vai querer ratos!
— Também falas bem! Bem sei que és tu quem o chamas para dormir na nossa cama!
— É para aquecer os pés!
A mulher relança o meigo olhar de céu ao marido e dá-lhe um toque com o cotovelo, sorrindo. O rosto dele ilumina-se, vindo-lhe à memória esse mesmo trejeito com que ela o cativara nos folguedos de S. João!
À roda da pequena aldeia e da casa do idoso casal a floresta era frondosa, envolvente quase num amplexo, ricamente obumbrada e ancestral. Como uma fronteira natural, protegia a singular povoação dos olhares desconhecidos e de outros acontecimentos aos quais parecia viver imune. Bordejavam-na neste abraço envolvente e reconfortante, os castanheiros, os carvalhos e sobreiros, as aveleiras e as nogueiras, como tentações oferecidas sem exigirem cuidados aos aldeões que colhiam os frutos para seu deleite nos dias longos e frios. O gado também era tentado para ali pastar, engordavam com as pastagens verdejantes que medravam com a humidade da floresta e iam entretendo o ruminar da erva com os frutos adocicados e estaladiços, em troca estrumavam a sadia mata que a atapetava. Humanos e animais eram atraídos para cuidarem da floresta e dela se satisfazerem com estas iguarias, sombra e sossego.

A juventude do casal foi vivida em pacífica comunhão. Herdaram a pequena casa dos progenitores, no entanto, perdera-se na memória do tempo os anos que esta contava, tendo pertencido aos avós, bisavós e outros demais antepassados da mulher.
A vida não fora excessivamente dura para com eles, diziam, sempre houvera para comer, algumas enfermidades, que graças à mestria da anciã da aldeia no manipular de ervas, unguentos e infusões tudo se curava. Na sua vida em comum, nos tempos de mocidade, havia só um pequeno espinho, que de quando em vez se agitava, ao enterrar-se um pouco mais nos seus corações, trazendo o desejo numa saudade da ausência de uma criança que germinasse no ventre da rapariga e enchesse os seus dias de mais amor, carinho e cuidados maternais.
— Não chores! Deus quis assim... Não sabemos o que nos aguardaria se filhos tivéssemos…
— Talvez seja eu quem não tos possa dar. Escuta António, talvez seja melhor deixares-me. Queres tanto ter um filho…
— Cala-te rapariga! Quero-te muito, seria incapaz de te deixar…não temos filhos! Pronto, acabou-se! Temo-nos um ao outro. Temos os nossos animais, a nossa horta...
— Não é a mesma coisa. O amor por uma criança é diferente.
— O amor é aquilo que nos faz cuidar, mimosear, fazer com que tudo cresça e floresça com os nossos cuidados e atenções. Não o vês? Quando se deita as sementes à terra e se não a cuidar, regar e podar as plantas e legumes, eles não medram? Se os animais não forem apascentados, tratados das maleitas, andarem p’ra aí sem acalento, morrerem de fome ou doenças ou comidos pelos lobos! Isto o que é?
— Amor! Eu sei António, eu sei…
— Vá anda cá. Limpa as lágrimas desses céus que tens na face e vamos à festa das colheitas!
— Olha! A aveleira já está pronta para ser plantada! – comentou a jovem mulher, mostrando entre as mãos um broto que despontava num recipiente improvisado para receber alguma terra e o fruto-semente.
— Olha que beleza, vamos lá agora e depois vamos à festa.

Trinta anos haviam passado, a memória trazia-lhe esta recordação como um lembrete para a tarefa que ao longo destes anos cumpria todas as semanas no verão. A outrora jovem e agora idosa estava à janela da cozinha, esquecida. Sem acordo de si ia mecanicamente passando o pano na loiça, enquanto contemplava o horizonte entrecortado pelas silhuetas da floresta.
“Amanhã vou lá! Talvez tenha crescido mais um pouco!” – pensou, enquanto as suas memórias a levavam, novamente, para o dia em que ela e o marido tinham semeado a bela aveleira.

 

CONTINUA

 

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Aguarelas

05.02.24, Olga Cardoso Pinto

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Pintar a delicadeza das aves não é fácil, especialmente a aguarela. Existem tantas nuances, tantos pormenores, imensos contrastes e expressões que basta uma pincelada para estragar o trabalho de um dia...a verdade seja dita, tentamos imitar a perfeição da Natureza, mas nunca a conseguimos verdadeiramente.

 

Votos de uma excelente semana.