Quartas de Contos
Avelina III
AVELINA
(Continuação)
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No tempo da aveleira ela deu os frutos, colhidos com tanto carinho pelas mãos calejadas que lhe ajeitaram a forma.
As avelãs que gerou eram graúdas em tons de canela, vistosas, dando à árvore um orgulho vegetal, competindo com os castanheiros que exibiam os ouriços prenhes de gordas castanhas luzidias.
Muitas avelãs foram deixadas, para os pássaros, para enriquecer o solo e para colheita tardia. Assim, enfeitada de frutos e rubras folhas, assemelhava-se a uma deusa pagã, a uma antiquíssima vestal. Um dos troncos encorpara, ganhando uma proeminência parecendo buchuda. As raízes pareciam braços onde pulsavam veias nodosas que se revolviam entranhando-se no fértil solo, como dedos, alimentando-se de nutrientes e sustentando o seu porte majestoso. António e Celeste admiravam-se, pois nunca tinham visto uma aveleira com tal aparência, talvez fosse de outras famílias até aí desconhecidas. Sim porque as árvores também têm família e sentem como gente, dizia Celeste. Agora entendia a conversa das árvores. O destino roubara-lhe a visão, mas dotara-a de outros sentidos mais apurados e dois deles cresciam viçosos como a aveleira – a intuição e a empatia, dizia que conseguia compreender as aves, os animais e as árvores. Sentia no seu coração e no seu espírito as conversas da Natureza, os seus murmúrios quando entrava na floresta, os seus espantos e cautelas, os segredos mais velados nunca ouvidos por nenhum humano.
— Sabes António, quando eles falam comigo sinto-me ser tocada nas entranhas, como sentem as mães quando geram um filho, ao sentirem-no rodopiar dentro de si, na seiva materna que lhes dá o alimento e a vida!
António abraçava-a. “Será que Celeste perdia o juízo? A falta da visão parecia estar a toldar-lhe o discernimento.” pensava o marido preocupado com estas revelações da esposa e com as constantes visitas à floresta, agora sozinha guiada somente por uma vontade e intuição desconhecidas.
Quando os últimos frutos foram colhidos, a floresta enfeitava-se dos tons quentes do outono que entrava magistral, manhãs e noites frescas e tardes ensolaradas. Preparava-se a Natureza para o longo suspenso em que viveria nos próximos meses, numa letargia como numa animação suspensa!
Celeste numa dessas alvoradas outonais acordou, ainda o negro da noite retirava de mansinho o seu diáfano manto dos céus. Sonhara com algo que a perturbou. Andara adoentada e o recolhimento era essencial para se curar, no entanto, tinha uma vontade desmedida de ir à floresta.
António sentiu-lhe o deambular pelo quarto, às apalpadelas para se vestir e o arrolhar do gato que acordara também.
— Onde vais tão cedo?
— Dorme que eu já volto!
— Se pensas que te deixo ir por aí fora, estás enganada, mulher!
Levantou-se, arrepiado pelo fresco da alvorada, vestiu-se assim a modos de atolambado e foi fazer o pequeno-almoço. O tilintar das loiças e dos utensílios vibravam nos ouvidos de Celeste, então, silenciosamente aproximou-se do marido e com jeitos refinados lhe retirou das mãos os instrumentos da fraca música.
— Deixa que eu faço. Vai-te lavar, tens aí água quente…
O sol despontava no horizonte, a neblina principiara a dissipar-se dos campos. A luz do astro que cedo madruga, doirava tudo em seu redor, como uma película de oiro fino, como uma talha doirada qual arquitetura barroca. O silêncio era audível, nada de pássaros nem bicharada de criação. Amanhecia num dia frio de outubro, o inverno ensaiava-se já ainda em pleno outono.
Celeste e António tolhidos nos agasalhos, investiam pela floresta onde os pássaros chilreavam de mansinho, em melodias afinadas cantadas uns em baixo outros em barítono lírico. A idosa parou e ficou à escuta, ela entendia estes cantares.
— Apressemo-nos António!
Celeste desenlaçou-se da mão do marido e apressou o passo em direção à clareira onde vivia a sua aveleira. Aí chegados, sentiram o local abrigado, aquecido como magia, os primeiros raios de sol incidiam em cheio no tronco buchudo da árvore. A neblina circundava a clareira como um anel translúcido.
O casal acercou-se da árvore, encostaram o peito, o rosto e as mãos nuas ao áspero tronco, sentiram então um estremecer leve que foi ganhando cada vez mais força num rufar ritmado. O corpo quente da árvore vibrava em sintonia com o bater dos seus corações. António e Celeste entreolharam-se e deram as mãos continuando a envolver a aveleira. A passarada agitada esvoaçava e chilreava amiúde, fazendo as copas lá em cima restolharem como se fossem rajadas de vento.
Um som seco fez-se sentir dentro da aveleira, como um rasgar de fibras lenhosas. Celeste tremia, o rosto roborizado transpirava e António sentiu a sua mão humedecida pelo suor da esposa. Não entendia o que se passava, ou antes era-lhe difícil compreender, mas o seu coração sabia o que estava a acontecer.
Quando o tronco se abriu numa fresta e odores frescos de madeira nova se escapuliram para perfumar a brisa, Celeste emitiu um som gutural. Um vagido de criança eclodiu e encheu de som o silêncio florestal! A idosa introduziu as mãos na pequena fenda que se abrira e retirou um recém-nascido envolto em heras e musgo viçoso! António, estupefacto, olhava a criança que era ajeitada no colo da idosa e que continuava choramigando pelo recente nascimento, pela luz que lhe cobria o rosto e o corpinho nu, alvo em cor e inocência.
Celeste cobriu-o com o xaile e beijou-o na boquinha rosada, proferindo uma oração, um encantamento que o marido desconhecia, ele mecanicamente tocou-lhe na pequena cabeça e abençoou a sua vinda a este mundo, depois ambos beijaram a menina que calidamente adormecera no colo da idosa mulher.
— Avelina será o teu nome. — proferiu Celeste virando a criança para a árvore como num ritual pagão e pediu a sua bênção e proteção, prometendo guardá-la e criá-la até o fim das suas vidas. António retirou uma pequena lasca do tronco e depositou-o junto ao minúsculo peito da criança, tal como um amuleto.
Lentamente as heras e o musgo que envolviam a criança, foram-se entrançando e recolhendo para ocultar a fenda por onde nascera Avelina.
No aconchego do lar, preparam um banho quente para a menina. António segurava-a cuidadoso, enquanto Celeste, extremosa, lavava o tufo de cabelo doirado, sedoso e ondulado. Quando o alvo corpinho, tenro e roliço foi afagado pela toalhinha do banho, António assombrado proferiu:
— A menina não tem umbigo!
— Claro que não, seu tonto! É filha da aveleira! Como poderia ter umbigo? Foi alimentada pelas heras, musgo e pela seiva da árvore. Esse laço humano que nos assemelha, não consta nesta criatura filha da floresta… — e beijou-a, incansavelmente, por todo aquele corpo imaculado que cheirava a mata, a plantas e a orvalho.
A dedicação e o amor de António fizeram-no esculpir um pequeno medalhão ornamentado com espirais, na lasca que retirara da aveleira. Estava, assim, concluído o amuleto que ligaria a criança à original progenitora.
CONTINUA
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Para ouvir, enquanto lê: The Memory of Trees - Enya