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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

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Conto: A Primavera num Arco-Íris

2ª parte

25.08.20, Olga Cardoso Pinto

a primavera num arco iris_OCP (2).jpg

Para hoje cá vai a 2º parte do conto, continuando a história que foi iniciada semana passada. Aqui está a 1ª parte para quem não leu

Boa leitura

Bjs

 

***

 

     À medida que os humanos se afastavam, aproximavam-se os animais, das cidades e das localidades desertas de gente, talvez curiosos pela ausência humana, em vontades para explorar todo aquele mundo humano desconhecido. Na minha janela apareciam pombos com quem partilhei algumas migalhas de pão. O hábito foi-se instalando – todos os dias, quase às mesmas horas, lá vinham eles e quando me demorava a satisfazer-lhe a gulodice, insinuavam-se através da vidraça como dizendo «Então?! Despacha-te, queremos comer!». Ganhei novos amigos - um engraçado bando encabeçado por um pombo ladino que até já falava comigo! Falar não falava, pelo menos na língua de gente, mas passei a compreendê-lo, por exemplo avisando-me da aproximação de uma gaivota que lambia o bico ao ver aqueles pombos gordinhos e bem alimentados. Os miúdos, também, apreciavam a companhia diária daqueles seres voadores que já se sentiam à-vontade no parapeito da nossa janela.

     O vírus já tinha nome, era a última informação atualizada nos noticiários, descendia de uma ampla família coroada pela sua nefasta malignidade. Surgira no mundo sem se saber como e nada o fazia deter. Levava os mais velhos, sem defesas que os protegessem contra este mal que os atirava para os hospitais ou num isolamento pior que a velhice, sem poderem ser visitados, mimados e no caso das últimas horas de vida, numa solidão que nem aos animais se deveria permitir. Era o vírus que impedia a partilha em comunidade, forçava ao isolamento e à solidão, o vírus que virou a vida de pernas para o ar, depois de a agitar na posição máxima da batedeira.

     Eu continuava a ir ao supermercado, revezando-me com o meu companheiro, porém tentava fazer as compras por perto, na mercearia da qual já era cliente. E continuava o ritual adquirido recentemente: desinfetante e proteção para o chão para quando chegasse não contaminar a casa. Não esquecia a máscara e o álcool gel, outros adereços que deveriam fazer parte das rotinas diárias. Cabelo apanhado e roupas fáceis de tirar e lavar. Enfim, era uma canseira…ficava ansiosa para me desprender e ir para a minha caminhada, para o meu retiro, para o meu mundo. Vestir a alma que ficara alcandorada naquele velho freixo.

     A seguir ao confinamento veio o desconfinamento, o abrandar das medidas que limitavam a nossa liberdade e opções. Estava agora nas nossas mãos, aquelas que diziam contribuir para o contágio, o rumo que as nossas vidas iriam tomar no trajeto da maldita pandemia e no regresso à relativa normalidade. Naquele maio que surgia tórrido no seu final, convidando as idas à praia, às esplanadas e jardins, todos estavam ávidos para desfrutar do exterior, deixar que a liberdade devorasse o medo e o calor o vírus. Aos poucos foi-se abrindo a porta, alguns trabalhadores já podiam regressar ao trabalho, bem era necessário para muitos garantirem o pão na mesa e o pagamento das despesas mensais. Ia-se ganhando mais confiança, porém toda a cautela era pouca.
     Por casa ainda se teletrabalhava e os filhos não regressariam à escola, continuavam com a telescola e nos trabalhos propostos por nós. A brincadeira, os pequenos passeios, as leituras e as atividades lúdicas continuavam a preencher as horas das semanas sem relógio.
Eu rumava para as minhas caminhadas solitárias todos os dias, alheia aos transeuntes que se somavam agora pelos caminhos, outrora desertos. Entrava na floresta, nessa sombra fantasiosa onde brincavam a luz e a sombra para criarem ambientes e personagens irreais. Descalçava-me e caminhava de pés nus para encontrar o meu freixo. Imponente, desgastado pelos séculos exposto aos elementos, e no entanto sábio, aconchegante e protetor. Ali escrevia e desenhava numa inspiração infindável!
     «Já sinto o odor da floresta, o perfume da Natureza. O trinar das aves ondula pelos meus ouvidos. A brisa fresca revolve as tenras folhas dos carvalhos e prende-se à madeixa dos meus cabelos, zombando da minha admiração pelo cenário que me cativa. O cantarolar da água desvia-me os sentidos, como é fresco e convidativo. Reparo no efeito da luz e das sombras, criam efeitos fantásticos, surreais, tentam a imaginação. Os raios de sol incidem numa clareira, onde brilha um imenso tufo de erva fresca. As gotículas do orvalho resplandecem como pérolas atraindo libelinhas e abelhas.
Liberto-me deste enlevo e acomodo-me sob este belo freixo, recosto-me no seu amplo tronco, testemunha de tantas eras. Alongo o olhar para uma ramificada e altiva aveleira, cresce segura e renovada pela nova primavera num arco-íris.»
     Respirei fundo, fazendo uma pausa da escrita, inspirei a felicidade que ali pairava, abri o meu livro e transportei-me para um novo tempo, uma nova história, uma nova vida...
     Faz falta voltar às origens, à natureza, ao despojamento. Desprendermo-nos das amarras das rotinas automatizadas. É essencial voltarmos a conviver com a Natureza, passar horas com ela e deixarmo-nos invadir por esse desapego, pelo fluir da vida e parar o tempo, respirar fundo e permitirmo-nos invadir por sentimentos leves e inspiradores para os dias de obrigações, de compromissos, de medo. Aproveitemos este tempo que pode ser de mudança, de melhoria. A Natureza é a vitamina, a vacina e a cura para os males que afetam o ser humano. Perdemos este contacto natural que faz parte da nossa génese, é tempo de o retomar e a reaprender a abrandar, tal como a Natureza faz!
     Fechei o livro onde escrevia proficuamente e guardeio-o do mundo no tronco da árvore anciã, bem no âmago do seu ser, naquele buraco escavado pelo desfiar do tempo.
     Esta primavera encerrada, confinada, vivemo-la nós humanos. Contudo, lá fora a vida gira, voam as aves construindo os ninhos onde nascerá o amor, o cuidar. Renovam-se as cabeleiras das árvores em vibrantes verdes e flores resplandecentes de perfumes. O azul cerúleo do céu aviva-se em dias mais longos e amenos. Revolvem-se as ondas do mar desse oceano atlântico que beija as praias deste país antigo, merecedor que Atlas continue a suster as colunas do mundo, domando as suas águas revoltas. Geram-se os bebés protegidos nos ventres maternos e cofiam-se os sentimentos dos pais que também os geram no coração. O silêncio ainda se solta por aí, nas horas em que nós alimentamos o corpo e a esperança, numa ânsia de que tudo vá ficar bem. Há arco-íris em muitas vidraças pintados pelas mãos das crianças nos seus afazeres artísticos. Por aqui por casa, também um ganhou vida e exibe-se orgulhoso na janela da cozinha, saudando cada amanhecer e despedindo-se de cada dia que passa.

     Numa dessas noites quentes, como era habitual, ao despedir-me dos filhos para uma noite de bom sono, o mais novo confessou:
     — Estes dias têm sido os mais felizes da minha vida!
     Eu estranhando a observação, pois muito se passara em tão pouco tempo, nesta reviravolta nas nossas vidas, perguntei:
     — E então porquê?
     — Ora…porque posso brincar mais, fazer as coisas que gosto mais e passamos mais tempo juntos! É tudo MAIS!
     Sorri. Que grande lição! De facto, para uma criança estes tempos eram tempos Mais - mais tempo ganho ao relógio, às companhias, às coisas boas da vida. Éramos Mais família! Nem tudo era mau…nessa noite, pela primeira vez, adormeci feliz.

 

CONTINUA

 

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