Leituras: Microconto
O lenço dos Namorados
O ritmado da mão e da agulha no passajar, hipnotizava-a, tornava-lhe a mente dormente, aturdida para os ruídos exteriores, do cacarejar das galinhas e do zurrar dos burros. O bordado ia nascendo daquelas mãos pequenas de dedos curtos e arredondados, como um parto sem dor, todo ele florido. No aconchego do alvo linho, a jovem semeava belas flores coloridas. Torneadas filigranas de fio e seda, enroscavam-se na bordadura daquele lenço que ganhava sentimento e alma.
Ana bordava afincadamente. A mente vogava num mundo só seu e dele, do seu amor que a iria deixar em carne viva de saudade, pois iria partir para longe, cruzar o mar infindo, o oceano como o boticário lho dissera; seria sim, um oceano de lágrimas saudosas pelo seu António. Tê-lo-ia em espírito, nas lembranças, no aconchego caloroso de uma recordação, de um beijo dado em surdina, no toque quente da sua mão. As lágrimas, como grossas pérolas que nunca usara, caíam-lhe no pano esquecido no regaço. Suspirou e voltou ao labor do bordado. As cores vivas nada condiziam com o seu sentir...pobre moça, sentir-se-ia como viúva se não fossem as cartas que iriam trocar.
Voltou afincadamente ao bordado, sabendo que necessitava de bons pensamentos para atrair bons presságios, não queria que o destino se amarrasse a maus augúrios. "Livrai-o, Senhor, de mau infortúnio. Que caia sobre ele as Vossas graças. Protegei-o. Amén!". Repetia várias vezes até voltar a cair na antecipação da partida.
Como há muitos séculos, Ana bordava para o amado o lenço que ele traria junto ao coração. Seria como uma eterna lembrança, um fio onde ambos os corações estariam atados pelas juras de amor. Ao bordar o lenço, bordava o destino em belos pontos e vivas cores para que o mal não atentasse, para que a sua vida lá longe, tão distante com tanto mar de permeio, não se perdesse nem esquecesse a sua amada.
António partiria em breve para o Brasil, levando um pequeno saco onde arrumaria a sua jovem vida, de poucos pertences e ralas riquezas. Ia nesse oceano, como uma estrada, no bojo do enorme navio fazer-se à vida, tentar fortuna e um dia teria Ana ao seu lado. Ambos formariam uma família, cultivariam a sua horta e o seu jardim por onde correriam tenras crianças de risos felizes e bochechas coradas.
De mão estendida, temerosamente, Ana ofertava o mais seu que lhe podia dar - o lenço por si bordado. Delicadamente lavado, engomado e perfumado de alfazema. Antes de lho passar dobrado para as mãos calejadas, beijou o nome que enfeitava o centro do pequeno quadrado de linho. As letras delineadas, feitas com ponto atrás, foram amorosamente orladas pelas flores e folhas em ponto cheio e corrente. António também o beijou, ficando com os olhos marejados ao ler naquele pedaço de tecido, naquele pedaço de amor:
"António,
Que o bordado do nosso amor te traga de volta para mim
da tua Ana"
Abraçaram-se longamente, sem se quererem separar, ficariam assim até ao fim dos tempos, mas o navio roncou, sobressaltando-os.
O lenço, guardara-o António junto à pele. Seria ele o guardador das suas lágrimas de saudade, de tristeza e alegrias; seria ele que encerraria o cheiro de Ana, o toque suave e doce, a cor da sua alegria, a alvura da sua alma.
O lenço, guardara-o António junto à pele, assim o faria a Ana quando voltasse. Só Deus o saberia quando...
Para ouvir enquanto lê:
Enchanted: David Michael Tardy