Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Os Nossos Contos de Natal 2021

Os Três Caminhantes

22.12.21, Olga Cardoso Pinto

shooting star.jpg

 

Os Três Caminhantes

 

“O importante não é o que se dá, mas o amor com que se dá.”
Madre Teresa de Calcutá

 

Os passos ecoaram nas lajes de pedra escorregadias. A viela malcheirosa, escura parcamente iluminada pelos archotes, achava-se deserta sem o pregão dos mercadores, sem gritos ou correrias das crianças. O fumo das poucas lareiras, espiralava pelo ar pesado de frio e humidade. Tudo dormia, até o cão sarnento que por ali se arrastava em busca de um osso ou courato.
O céu escuro ora encoberto, ora deixando vislumbrar as cintilantes estrelas, foi riscado pelo trajeto fulgurante de algo que o amedrontou. Estancou contendo a respiração, encostou mais ao peito os pergaminhos que trazia ficando a admirar, incrédulo, para o evento que se desenrolava no firmamento noturno. Parecia que o sol fora arremessado por uma força descomunal, deixando atrás de si um rasto centelhante. Cobriu a cabeça e apressou como pôde o passo até ao templo, correu o ferrolho, esgueirou-se rapidamente para o interior e encerrou a imensa porta atrás de si, ficando encostado a ela um pouco, recuperando o fôlego e o juízo, pensando que afinal sempre se iria concretizar...

 

O rapazinho há muito que dormia. O ar morno da noite entrava pelo postigo, deixando o cómodo agradável. Sonhava com aventuras sempre acompanhado pelo seu tambor. Sonhava com viagens, mapas e que voava em pleno céu azul, vislumbrando a aldeia, depois a cidade e o mundo, ali bem alto onde só brilham as estrelas e o sol. A gata miou, erguendo-se do aconchego junto dos pés da criança. Ele acordou, sentou-se na cama, esfregou os olhitos e olhou para a janela, atraído pelo clarão vindo do céu. De um pulo foi ver o que iluminava a noite daquela forma. Seria o sol que caíra? Seria uma estrela que perdera o rumo e que se soltara do firmamento?

 

A divisão estava quente, do forno de boca larga e escancarada via-se o lume que dançava como enfeitiçando as sombras. A jovem limpou a testa transpirada, desviando uma madeixa de cabelo que teimosamente se desprendera do lenço que a prendia. Algo no seu campo de visão a fez deixar a massa para o pão na bancada e levá-la a assomar à porta aberta. Um clarão cruzava os céus noturnos, irradiando uma imensa luz deixando atrás de si um rasto feito cauda como de um dragão. Ela abriu a boca de espanto e recordou as premonições da avó.

 

O céu do mundo fora atravessado por aquele corpo celeste, incandescente, naquela noite, como em pronúncio de algo que há muito era aguardado. Foram muitos os que o viram, mas poucos os que se importaram e acreditaram que algo grandioso estava prestes a acontecer. Porém, foram muitos que ficaram indiferentes ao seu brilho, ao seu fulgor pela noite, cruzando o mundo, cruzando um planeta conturbado sem paz, com fome, sem liberdade, sem sabedoria e sem compreensão. Só os que esperam, que agem e esperançam é que são tocados pelo fulgor da luz na noite. Assim, os três – o velho monge, o menino sonhador e a jovem padeira aceitaram o desafio trazido por que aquele corpo gelado vindo dos confins do universo. Cada um partiu à mesma hora do seu ponto no planeta, do seu país, da sua casa, levando consigo o melhor que tinham: o velho monge a pena e o pergaminho para escrever, o menino levava o seu tambor que ia tocando ao longo da viagem, a jovem padeira levou os melhores pães de centeio adoçados com passas para apaziguar a fome no caminho. Partiram para onde a estrela cadente os levava, ao destino onde a promessa de felicidade seria realizada, levando o melhor que tinham para oferendar.

A difícil jornada duraria alguns dias de viagem. Após longos dias e noites de caminhada dura, com privação de alimento, agasalho, expostos às intempéries lá se juntaram a uma caravana que teria como destino talvez o mesmo dos três aventureiros. E foi nesta caravana que o monge, o menino e a padeira se encontraram. A humilde comitiva era composta de saltimbancos, artesãos e uma adivinha cega que lia a sina. Seguiam pelas terras que lhes permitiam ganhar a vida, sem dono, sem senhor que os subjugasse, às vezes a fome levava a melhor e roubavam para comer, mas eram livres…e felizes.
Ao fim do décimo dia, pelo raiar da manhã, os três acordaram à mesma hora juntando-se à fogueira para comer alguma coisa. Estranhando a coincidência, trocaram as primeiras palavras entre si. Chegando à conclusão de que ambos iriam para o mesmo lugar, o mesmo local onde sonharam ter poisado a imensa estrela que cruzara os céus naquela noite. Mas teriam de ir a pé, pois a caravana seguiria por outro caminho. E assim prosseguiram ao longo de dois dias quando foram assaltados por um bando de malfeitores. Ao monge rasgaram-lhe os pergaminhos vendo que de nada valioso trazia consigo, danificando assim os registos que fizera ao longo da viagem. À padeira comeram-lhe os pães que trazia embrulhados no avental, escapando só um por ser mais pequeno e que escondera junto ao peito, pois anteviu a fome até ao destino. Ao menino obrigaram-no a tocar o tambor incessantemente até lhe doerem as pequenas mãozinhas. Depois gargalhando pelas maldades feitas, cavalgaram nos seus belos cavalos até desaparecerem na linha do horizonte.
O dia chegava ao fim. Os três caminhantes estavam desalentados. Perdiam a esperança e a força de chegar ao destino. Mas, como se foram meter nesta empreitada de encontrar o poiso da estrela? Talvez nem o conseguissem, talvez fosse tudo um logro, uma alucinação das suas cabeças. Depois de longamente conversarem, acabaram por adormecer sob um palmeiral frondoso onde não faltavam água e tâmaras, foi o que lhes valeu para acalmar a fome e o cansaço. Dormiram profundamente, sonhando os três o mesmo sonho, o mesmo sono retemperador.
O sol escaldante acordou-os e o piar das garças trouxe-lhes a melodia da manhã. Passaram-se treze dias desde que saíram de suas casas. Teriam de se pôr em marcha, a estrela aguardava, mas longe ou perto? Uma das garças levantou voo e parecendo aguardar que a seguissem. O menino reparou nela e chamou o monge e a padeira para que todos a seguissem. Caminharam mais umas horas, e quando já exaustos ponderavam desistir, eis que a garça desaparece nos céus, o final do dia estava próximo. Então um enorme clarão insinuou-se no céu. Os três caminhantes encandeados pela intensa luminosidade, olharam para onde esta intensa luz se estendia. Sobre um tosco curral havia um ajuntamento de pastores. A custo lá se aproximaram afastando ovelhas e cabras que por ali ficaram junto aos donos. O rapaz foi o primeiro a ver, ficando encantado com o quadro que se abria diante dos seus olhos – uma mãe a amamentar o bebé e o pai abraçando a jovem mãe, embevecido, afagando os parcos cabelinhos da criança. Então o menino, querendo oferecer algo àquele bebé que a estrela lhe anunciara, envolveu os frágeis e doridos pulsos com os atilhos das calças e tocou o seu tambor como nunca tinha tocado. A melodiosa e compassada música surgiu fazendo o bebé olhá-lo e sorrir. Um dos pastores juntou-se tocando a flauta de junco que trazia no bolso, era maravilhosa a música que enchia o ar. O velho monge comovido com tamanha beleza, com a singularidade de tal revelação, rasgou a sua veste e escreveu um poema para o menino que ali nascera. Um dos pastores de voz clara e celestial cantou o poema musicado com o tambor e a flauta. A jovem padeira, de olhos rasos de lágrimas, tirou o minúsculo pãozinho do avental e depositou-o na manjedoura, em jeito de oferenda, onde o bebé fora deitado para adormecer, embalado pela música e pelos cânticos entoados pelos pastores e pelos três caminhantes.
A noite foi caindo, as estrelas piscando no firmamento. A intensa luz que pairava sobre o curral alargou-se iluminando três vultos que chegavam de oriente, montados nos seus camelos. Todos se afastaram cedendo a passagem. As majestosas figuras depositaram os seus presentes, saudando a todos. A noite ia longa e ninguém arredava pé daquele presépio que crescera. A jovem mãe tomou nas mãos o pãozinho de passas e foi partilhado por todos, dividido em pequeníssimas porções, mas que lhes soube a lauta refeição.
A luz intensa, da estrela que pairava iluminando o local, foi subindo, subindo, até ser um ponto de luz lá longe no firmamento celestial, recolhendo à origem. Voltaria certamente um dia, nem que fosse no coração do mais valente e esperançado ser.

 

 

Este conto foi escrito para este ano de 2021, respondendo ao desafio Os nossos contos de Natal da nossa querida Isabel, do blog Pessoas e Coisas da Vida. Tornou-se já uma tradição a partilha de estórias alusivas à época, e como sabem foi assim que nasceu a compilação em livro já por aqui amplamente divulgado. 

Bjs

 

E para acompanhar a leitura, a sugestão de uma música de Natal que inspirou este conto, uma música que gosto bastante, desde criança: Little Drummer Boy interpretada pelos 
for KING & COUNTRY

 

 

 

Eu apoio

20 comentários

Comentar post