Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

Ponto a Ponto se une um Conto

O Outro Lado do Rio - 2º capítulo

07.11.19, Olga Cardoso Pinto

IMG_1100.JPG

Olá! Hoje é quinta-feira e dia de leitura de mais um episódio do conto O Outro Lado do Rio.

O dia convida à leitura acompanhada de uma bebida quente, aproveitando a pausa seja do trabalho, das aulas ou de outras tarefas que nos aguardam diariamente. Esta é uma narrativa enquadrada num ambiente rural onde as histórias passavam sabedorias, fazeres e tradições ao longo de gerações.

Obrigada a todos que engrandecem este cordão de leitores que se vai formando em torno destes contos.

Um beijinho

 

 

     Os dias urdiam as horas onde as memórias ancoravam, desejando ganhar viço e raízes no pequeno coração infantil. A menina pequenina, feita de saudades e odor, vivia com o pensamento numa história que a avó, a mãe com açúcar que a criou, lhe contava quando iam lavar a roupa ao rio.

     “Era uma vez um rio, forte, corredor, frio como o gelo, que bordejava uma aldeia pequena, encarrapitada num monte feito de granito antigo e de fraguedo imponente. Nesta aldeia viviam poucas famílias, com muitos filhos pequenos e uma só avó! Esta senhora idosa, velha, velhinha sem se saber a idade, tratava todas as crianças como netos, não se sabendo quais eram os verdadeiros! Mas pouco importava, pois todos os catraios eram mimados e adoçados com igual amor pegadiço como o mel.”

     — Mas avozinha, como pode ser a velhinha, avó de toda a aldeia?

     — Pois então!? Pode ser sim senhor! O coração de uma avó é tão grande que cabe lá dentro todo um mundo! Mas queres ouvir a história ou não? Bom, então escuta…

“Todas as noites a velha velhinha sentava-se num mocho e à sua roda acomodavam-se os pequenos de pernitas cruzadas como gafanhotos, boquitas silenciosas como o poço e de orelhas arrebitadas como as ervas para ouvirem mais uma das histórias da Vó Velha.

     No verão, depois de um dia abrasado pelo sol, com a pele suada e o corpo cansado de tanta brincadeira em rebolos pela palha, as histórias da velha mulher refrescavam aqueles pequenos, ávidos pelas palavras que se desenrolavam da boca da avó comunitária e que iam tecer imagens, seres e mundos onde as crianças poderiam viver. Durante os sonhos noturnos todos eles as habitavam, sem entraves, nestes contos inventados que nasciam deste parto da imaginação de uma mulher tão idosa.

     No inverno, junto ao lume que estalava na pedra do lar, sentavam-se juntinhos, apertadinhos, para que o calor ficasse entre todos e não se escapulisse invejoso para longe. A velha avó cobria as pernas com uma manta de lã e aí depositava as mãos engelhadas pela vida e que contavam tantas histórias como ela. Então ela desfiou a história, como se fosse um rosário, talvez algo acontecido naquela realidade rural:

     «O rio quase todos os anos, durante o inverno, levava para si alguém da aldeia. Iam assim sem aviso, apanhados pela pressa, pela correria louca, cheia e enfunada que a corrente levava na passagem. Dizia-se que quem destes não se despedisse, atirando um seixo e lá mergulhando encontraria por obra de desconhecida magia o familiar ou amigo desencarnado.»

     — Como isso pode ser, avozinha? Então quem morre está no fundo do rio?

     — Parece que sim, e para quem não se despediu pode fazê-lo, mergulhando na correnteza guiado pelo seixo, mas só com um muito especial!

     — Ahhh! E o que acontece? A pessoa viva não se afoga?

     — Minha querida! São artes mágicas. Saberes antigos, misteres…

     — Tu já lá foste?

     — Queres ouvir o resto da história? Atenta então…

     A avó velhinha contava assim:

     «Certa vez, choveu horas, dias, semanas. Parecia que o céu chorava, inconsolável por algo acontecido. Esquecido ou perdido o sol tão caloroso para secar a terra. Desolada andava a vida por não ver o sol. Não havia pássaros, nem flores, nem o arco-íris para anunciar o fim da tempestade!

     O rio ia feito homem! Crescido e musculado, corria doido pelos penedos, engolia campos e tudo o que se atravessasse no caminho. Estava louco, diziam, doido de paixão pela chuva que o engrandecia!

     Havia um rapazinho que receoso pela segurança da sua cabrinha, se aventurou, contrariando a mãe, em ir buscar a Estrela, assim era o nome da bichita. Meteu os pezitos pequenos, mas ligeiros, no enlameado caminho. Afoito e já todo encharcado chamou pela Estrela que acorreu ao seu encontro, desejosa dos afagos da criança. Enroscou-se nos seus bracitos e deixou-se transportar junto daquele peito cheio pelo rufar do bondoso coração. Tentando encurtar a caminhada para fugir à chuva inclemente, atreveu-se o pequeno a ir pelo caminho junto do rio. Mas, a incauta decisão condenou-o. Com o peso da cabritinha, o andar vacilante sobre as pedras soltas e a enxurrada que invadia o lugar, afogando-lhe os pés nos duros e escorregadios tamancos, perdeu o equilíbrio e caiu. A Estrela grande saltadora, de um pulo pôs-se longe, mas o rapazinho enovelado naquela água crescida, revoltada, foi levado para o meio do rio. Ainda gritou por ajuda, tentou nadar, agarrar-se a algo que o ancorasse à vida. A corrente podia mais do que ele, bruta e sem misericórdia conluiava com o rio para o levar para o fundo, tirando as parcas forças que ainda lhe restavam nos finos braços.

     Em casa todos procuravam o menino e quando a Estrela chegou, toda molhadinha e tristonha, a irmã do rapazinho estremeceu! Onde estaria o seu irmãozinho? Perdido por aí, abrigado da tormenta? Ou tivera a fraca ideia de vir pelo carreiro do rio? Quando este pensamento se formou sobressaltou-se a sua alma! Doeu-lhe o peito e convulsionou o jovem corpo de menina-mulher.

     Os dias passaram e o sol voltou a iluminar o céu. A vida recompunha-se, curando a enfermidade gerada por tanta água. Mas o cinzento da tristeza ainda invadia a morada da família do menino. A irmã tentava consolar mãe e pai, desfeitos pela ausência, pela incerteza do destino da criança. Foi à janela da modesta casa e pediu ao vento que lhe dissesse onde estava o irmão. Ele nada lhe dizia, apenas a brisa lhe acariciava o bonito rosto, zombeteiro da tristeza que morava nos seus olhos e lhe despedaçava o coração.

     Todos os dias pela alvorada, ao cantar da cotovia, a rapariga vai à janela e volta a pedir ao vento que lhe diga onde está o irmãozinho. Mais uma vez só a brisa ou a rajada responde ao seu pedido, deixando a jovem angustiada sem consolo nem sentido.

«Onde está? Pergunta ela, contendo a aflição. Quero vê-lo pelo menos para me poder despedir!».

   As crianças de boquitas abertas de espanto e de sono espantado, aguardavam o desfecho da história, porém a idosa senhora cansada do longo dia, levantou-se e afugentou a pequenada para se recolherem nas suas enxergas e dormirem envoltas pelos sonhos onde um rapaz e um rio seriam os protagonistas.

    — Avozinha podes contar-me o resto da história? Conta…

    — Está bem…então a irmã desolada queria saber do irmãozinho. Ora escuta:

     O dia corria sereno, o estio repousava absorto pelos campos deixando os insetos zunirem pelas cercanias. Os passos decididos levaram a moça ao abrigo da Vó Velha. Ela sabedora aguarda-a no alpendre, de chapéu de palha largo e roupas escuras. Sentaram-se as duas de mãos dadas como irmãs, corriam quentes as lágrimas no rosto corado da moça. A velha repara que a menina já é quase mulher, mas velha pela tristeza, pela perda daquele que do seu sangue é.

     “Pergunta à cotovia, pois o vento é mentiroso, tão depressa diz verdade como inventa desdenhoso!”

     “Mas o vento em todo o lado gira, tudo vê e encontra! Pode ser que o veja, perdido ou morto… ou esquecido!”

     “Pergunta à cotovia! Ela voa entre o céu e a terra, tudo vê com o doce olhar, mergulha no céu como quem mergulha no mar! Ela diz-te onde ele está, se te aguarda ou se já foi…se cantar é porque ora a Deus pelo teu irmão.”

     Foi numa dessas manhãs em que a neblina refresca o ar, esbatendo as cores da natureza numa patine etérea e surreal que a moça chamou pela cotovia. A ave, no alto, ouviu a voz límpida e melodiosa de rapariga, mergulhou no vazio do céu, rodopiou pelo campo e poisou na pequena laranjeira do jardim.

     “Que me queres?”

     “Peço-te que encontres o meu irmão! Perdido, morto ou esquecido desde as cheias do inverno! Por favor! Pedi ao vento, todos os dias na estação fria, ele não me ouviu, zombou de mim e nada disse! Peço-te cotovia, senhora dos céus e das manhãs que do alto vejas onde ele está…que mo digas nesta primavera!”

     “Menina, o teu pedido lamentoso traz-me tristeza e desconsolo. Acreditaste que o vento te trazia novidades? Que se compadecia da tua dor? É mentiroso, sopra forte por regozijo e ao de leve por preguiça! Procurarei teu irmão, descansa que o farei!”

     “Obrigada, ave do infinito, irmã cotovia!”

 

Continua

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.