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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

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Ponto a Ponto se une um Conto

Histórias de uma Árvore - 2º capítulo

05.12.19, Olga Cardoso Pinto

rolas e freixo 2.jpg

Bom dia! Mais uma quinta-feira e mais um capítulo. Neste excerto de hoje a velha árvore falará? Se o fizer, o que dirá? Neste recanto campestre há muita atividade e conversas para pôr em dia! Vamos espreitar?

Bjs

 

 

     O dia nasceu nublado, vinham de norte as nuvens enfunadas e maldispostas! Os pássaros arrepiados faziam breves incursões aos campos, tentando aquecer-se com as atividades matinais.
     As rolas, sempre atentas e grandes cuidadoras da árvore anciã, acercam-se dela estranhando ainda dormir. Com bicadinhas leves querem acordá-la, fazem-lhe cócegas entre as placas da casca, mas ela não se mexe!
     — Estará morta?
     — Acho que não…
     — Como saberemos se morreu? Todas as árvores morrem de pé!
     — Nem todas! E aquelas que são atiradas ao chão pela ventania ou pela mão do lenhador ou do malfeitor que nos rouba a casa, a sombra e a companhia?
     — Vou dar-lhe mais umas bicadinhas!
     O Freixo sentindo o repuxar na grossa casca, estremeceu e agitou os ramos, roncou alto e bocejou! As rolas assustaram-se e esvoaçaram durante breves momentos.
     Tudo parou! O vento do norte, frio e insensível, calou-se. As aves afoitas pousaram nas ervas enfeitadas de pérolas de orvalho, as abelhas calaram-se…o silêncio imperou! Então, uma voz cava e silenciada durante anos, durante séculos falou:
     — Porque me acordam? Deixem-me dormir até as manhãs serem mais quentes! Até as flores desabrocharem em pleno, para que as abelhas encham de pólen as suas colmeias, até virem as joaninhas e outros insetos cantarem-me melodias vibrantes, as aves migrantes voltarem e trazerem-me novidades doutros lugares e doutros tempos!
     Todos se olharam, admirados, atónitos pela velha árvore finalmente proferir palavra! O som da sua voz era estranho, quase assustador, mas ao mesmo tempo encantador, de uma sonoridade ancestral, era o som de uma voz antiga que estivera calada muito tempo e que surge rouca e cheia de vida!
     Estavam todos a seus pés, junto das suas largas e profusas raízes, olhando admirados, de cabeças e olhitos levantados para a majestosa árvore, sua protetora, divindade e mestre!
     A coruja acordou com tal rugido. Sempre pronta e sabedora, acercou-se da velha árvore:
     — Perdoa-nos, grande anciã! Preocupamo-nos por te ver dormir tão profundamente, e as irmãs rolas, que tanto te adoram e que de ti cuidam, pensaram que estivesses doente!
     — Doente!? Eu!? Ah, ah, ah! Sou velho, mas doente não! Como posso estar doente!? Eu que alimento e curo as maleitas do gado. Da minha casca e das minhas folhas os Homens fazem curas para a gota e reumatismo! E ainda curo as feridas e tiro a febre!
     Todos estavam admirados, não só por aquela voz que entoava, ressoando pelo lugar, mas também pela sabedoria que emanava daquela boca natural, talhada num tronco rugoso que se dividia parecendo que dele surgiam mais árvores que trepavam por ela acima, de braços elevados ao alto até uma copa cheia e verdejante.
     Alguns coelhitos saíam a medo das tocas, ouviram a conversa e curiosos sentaram-se perto do velho Freixo. Um pequenino, ainda nada habituado à convivência com outros seres, achou interessante aquele dispersar de raízes, semelhantes a dedos, que se estendiam pelo campo fora, saltitou e foi mordiscar ao de leve nas pontas. O Freixo deu uma gargalhada profunda ao sentir as cócegas, todos se sobressaltaram.
     — Pequeno irrequieto! Não te ensinaram que não deves afiar os dentinhos nos pés dos outros? Mas deixa-te estar, nada temas, pequeno!
     O pequeno coelho ia a afastar-se para se refugiar junto dos pais, porém estancou ao ver que a árvore se dobrava para o acariciar ao de leve com os ramos.

     O dia ia avançando e o sol curvando no horizonte, já passava do meio-dia. A passarada esquecera-se de comer! Ouviram estórias desfiadas de tempos esquecidos, memórias longínquas daquela árvore que vivera muito, presenciando o desenrolar do tempo, dos dias e das vidas!
     — Há quantos anos vives, velho Freixo? – interrogou o pintassilgo.
     — Ohh! Isso já nem sei bem! Fui plantado aqui por uma jovem que tinha segredos nas mãos e no coração! Oh, foi há tanto tempo! O correr dos tempos pode pregar-nos partidas, sabias? Assim como as minhas raízes se entrelaçam, assim são as minhas memórias… — e quedou-se pensativo.
     Aves, esquilos, coelhos, insetos e demais bichos aguardavam pelo resto da conversa, mas o Freixo cansado adormecera, entrelaçando no tronco uma raiz que lhe crescera do buraco que surgira há muito no seu corpo velho e rugoso.
    — Deixá-lo dormir! Vamos nós comer! Daqui a nada é noite e nós de barriga vazia!

    Passaram-se os dias e o Freixo ainda dormia! O seu dormir era como a sua vida, suspensa no tempo, no desfiar dos dias e dos acontecimentos que marcam uma era.
Do alto da sua copa, dos Homens viu guerras, viu batalhas, amores vários, juras e uniões. Viu o nascimento dos pássaros, mortes e tristezas mil, mas também o desabrochar de novas vidas e esperanças. Viu o mudar das estações, dos tempos e das vontades. Viu irmãos seus serem abatidos para serem barcos, indo retalhados para longe, à descoberta de novos mundos. Outros foram consumidos pelo fogo que lhes lambeu os pés fortes, tombando carbonizados pela indiferença e maldade.
     Na sua sombra acolheu ovelhas e cabras e Homens. No inverno os cogumelos adornam-lhe os pés e os mais atrevidos enfeitam-lhe o tronco, como o musgo que o agasalha do frio intenso.
     Quando as folhas brotam de mansinho, depois das últimas flores desaparecerem, o velho Freixo rejuvenesce, mas só agora falou, esteve calado muitos séculos. Todos perguntavam porquê!
     Nessa noite os bichos deitaram-se tarde, estiveram a conversar e combinaram perguntar à árvore, mal ela despertasse, o que a fez falar e partilhar as suas memórias com eles, simples seres que se abrigavam e viviam dependentes daquela árvore centenária!

 

Continua

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