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A Cor da Escrita

Páginas onde a ilustração e o desenho mancham de cor as letras nascidas em prosa ou em verso!

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Quartas de Contos

Avelina II

21.02.24, Olga Cardoso Pinto

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AVELINA

(continuação)

 

🍃

 

A tarde estava encrespada pelo frio cinzento. O vento bufava trazendo enregelada a chuva que principiara a cair, ainda miúda, daquelas nuvens escuras que pareciam odres enfunados.
— Logo à noite vamos ter muita chuva.
— Agasalha-te homem! Não queres ficar doente agora no princípio do frio, com esta morrinha.
Quando saíram do aconchego da casa, o vento esbofeteou-os e a chuva num cair leve e diáfano concedia à paisagem um efeito de velatura. Sentia-se na aragem o odor vindo do centro da aldeia onde eram assadas as carnes, as castanhas e cozinhados os cogumelos. Abriam-se os apetites com tão aguardado manjar.
Cada um com a sua capa, agasalhados para a caminhada, lá foram afoitamente pelo caminho até à floresta. António ia à frente com a candeia seguido pela mulher, ambos ainda novos, no vigor da idade e das pernas.
Quando entraram na floresta, a noite já se ensaiava. Ali, parecendo quase uma catedral, o resguardo era notório, a ventania sacudia somente a copa das árvores, restolhando as últimas folhas que restavam. As levadas cantarolavam no movimento da água gelada que embatia nos penedos, tal era a força do seu correr. O odor a húmus, adocicado pelo cheiro das folhas e frutos caídos desmaterializando-se, impregnava o ar. António aproximou-se da jovem mulher e enlevou-a pela cintura beijando-a ternamente.
— Para António! Vamos plantar a aveleira...
Assim o fizeram, quase de mãos dadas colocaram o jovem rebento no melhor lugar da clareira, onde poderia desfrutar do sol e da humidade consoante a estação. Desabrocharia sem o estorvo das sombras nem das pedras. Ajeitaram a terra fértil ainda com as mãos nuas e cada um deu-lhe um beijo, como uma bênção, tal como os pais dão aos filhos.
Ainda a jovem limpava as mãos ao avental, quando António a voltou a agarrar com jeitos ternos e quase sedutores.
— Amo-te Celeste!
— António, faz-se noite, está frio e devemos ir…
Ele não a deixou acabar, beijou-a e ela deixou-se levar por aquele calor feito de homem, doçura e paixão, pelas mãos que a tocavam numa candura, pelo sabor daquela boca que a beijava até à alma. Neste enlevo o amor aconteceu, natural, ingénuo e límpido.
Semearam uma árvore e o amor feito uniu-os à floresta, às árvores e seres que espreitavam o terno ato, selando aí o futuro que os aguardaria.

Celeste depositou a malga junto às demais e foi avivar o lume, o pensamento ia-se ocupando como o bruxulear da chama, ora tremeluzindo para ali, ora tremeluzindo para aqui:
“Tanto ano se passara e a aveleira ainda não dera frutos. Não chegara o amor que lhe deram? Ou ficara o rebento ciumento pelo amor que trocaram nessa noite, há tantos anos, na floresta?
No dia seguinte iria regá-la, vê-la finalmente! A aveleira não seria como ela, estéril, oca e seca.”

O dia amanhecera radioso, o sol espreguiçava-se vigoroso pelo céu azul, instigando a passarada numa cacofonia de melodias maravilhosas.
Celeste abriu os olhos, desperta pelos sons vibrantes que invadiam os seus ouvidos fazendo tinir cada músculo do seu corpo ainda inerte. Esfregou delicadamente esses olhos que eram os céus do seu António, onde ele se elevava num voo amoroso ao longo de tantos anos. Sentou-se na cama e, vagarosamente, colocou as pernas fora das cobertas, tentando alcançar os chinelos. Pestanejou, mas ainda os olhos estavam turvos, talvez pela noite dormida em sono profundo e pela repentina invasão de luz no exíguo quarto. Levantou-se e sem compreender, nada via. Tentou andar arrastando os pés, no entanto, foi embater na cadeira onde estava a roupa. António acordou, estremunhado, e perguntou:
— Que se passa?
Viu a mulher levantada e pensou que se preparava para vestir. Ela virou-se com os olhos marejados de lágrimas, o rosto contorcido de dor. Os cabelos soltos, ondulantes e quase vivos, cobriam-lhe os ombros como um enfeite. Levou as mãos ao rosto e proferiu numa voz entrecortada pelo choro:
— Estou cega António! Estou cega!
António caminhava apático em direção à floresta, levava na mão o regador em jeito displicente, balançando-o, fazendo chocalhar no seu interior o alimento para a jovem aveleira que frondosamente se erguia na clareira da floresta.
No seu pensamento bailavam a dor e a incompreensão. Como era possível a sua Celeste estar cega? Foram à cidade, dias antes, pois a anciã curandeira não dava conta da maleita. No hospital, um médico já avançado na idade, após longos exames àqueles celestiais olhos, finalmente vaticinou a cegueira incurável na idosa.
Celeste ficara uma sombra do que era, apenas em cinco dias a senhora perdera o viço, a alegria do viver e até os beijos do marido lhe sabiam a nada, aqueles beijos que lhe davam alento quando ela, entristecida pela infertilidade, remoía a sua condição.
Quando António, cabisbaixo, entrou na clareira, ouviu algo a que não prestou atenção. Olhava o céu de um azul invejável, o mesmo azul que banhava o olhar de Celeste, agora mortiço para os tons da vida e da Natureza. O sol irradiava luz e calor neste princípio de verão, aquecendo a bela árvore de tronco acinzentado que se dividia desde a base em vários caules hirtos e altivos. Crescera bem, robusta e elegante nesses seus braços que se elevavam para o céu. As folhas arredondadas em feminilidade, exibiam um verde intenso. No chão, ainda restavam os vestígios das encantadoras flores amarelas que, em cacho, a enfeitaram na primavera. Todos os anos, desde que fora plantada, era podada, ajeitada e mimada pelas mãos experientes de António e pelo cantarolar e pelas palavras doces de Celeste à medida que lhe ia limpando a caldeira e adubando sempre que necessário.
A aveleira tornara-se robusta, de porte majestoso, invulgar para uma árvore assim. António tocou-lhe e jurava ter sentido algo a retorcer-se no denso tronco. Deixou ficar a palma da mão, sentia o calor que dali emanava, talvez fosse o sol que a aquecia inclemente. Um bando de pássaros distraiu-o desta sensação. Numa alegre cantoria trinada, saltitavam de ramo em ramo na aveleira, como embalando-a.
“Seria desta que em setembro teria avelãs? Celeste gostava muito deste fruto. Dizia que era a árvore mais mulher que tinha visto. Na sua elegância de troncos, nos arredondados e serrilhados das folhas, como bordados, nas flores delicadas e dispostas como um ramo de noiva e no fruto que emergia do seu aconchego como brincos de dona rica. Ah, como gostava de a presentear com esta visão! Levar-lhe um cesto cheio de avelãs para poder comê-las assim cruas ou torradas ou, ainda, em creme que sabiamente ela faria para barrar o pão saloio. Para ele era no bolo, o doce do mel misturado com o paladar da avelã era a sua iguaria de eleição!”
Após regar a robusta árvore-arbusto, deixou-se cair junto a ela e, chorou copiosamente, neste seu jeito desabafou. Sentia tristeza pela sua amada Celeste não o ver. Quem me vai dizer “Olha-me essa camisa homem! Como está suja!” e também “Como estás bonito António! Gosto de te ver escanhoado! Pareces um fidalgo com esse rosto trigueiro enfeitado por esses olhos de avelã!”. E voltava a chorar, e voltava a lamentar-se numa voz rouca, sumida…
Pouco depois, calaram-se os pássaros, cessou o zumbir dos insetos e a aragem refrescante tocou-lhe o rosto molhado, ele sentiu um arrepio e elevou os olhos, o sol não o deixou ver, mas pareceu-lhe que algo pousara na aveleira e que de dentro dela voltou-se a revolver algo desconhecido.

— António leva-me à floresta! Quero sentir as árvores, sentir os cheiros, ouvir o seu roçagar provocado pelo vento. Leva-me contigo…quero ver a nossa aveleira.
— Mas tu não podes ver, minha querida!
— Posso marido! Vejo com os olhos que tenho nas mãos, nos ouvidos e no coração. Anda vamos!
Nesse dia, Celeste estava mais alegre, talvez o fim do verão augurasse boas coisas. Deu o braço ao seu António e partiram os dois numa caminhada lenta, conversando animadamente, quem visse não diria que Celeste estava cega.
Celeste entrou na clareira guiada pelo marido, desprendeu-se do seu braço, inspirou fundo e ficou à escuta. O silêncio imperou, nem uma brisa se ouvia. Ela como se fosse misteriosamente orientada, dirigiu-se em jeito decidido à sua aveleira sem tropeçar, ficando António estupefacto com tamanha desenvoltura. Foi tateando até encontrar os ramos mais próximos e apercebeu-se, encantada, que frutificava. Os pequeninos bolbos brancos como a neve já espreitavam sob o chapéu que os abrigava.
A mulher encostou o rosto ao tronco mais forte da árvore e abraçou-a demoradamente. O seu coração batia ritmadamente com o pulsar da seiva da aveleira. Mulher e árvore estavam em sintonia, ambas sem o sentido da visão, mas com o dom do sentir, os sentidos afinados partilhando aquela energia primordial, feminina e eterna. A árvore sentia a mulher que lhe dera o ser, a envolvera em cuidados delicados e ternura, desabrochara nesse amor e por isso ficara ali à espera de que ela a fosse ver, não com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma, do sentir. Agora compreendiam-se. Algo se contorceu no interior da aveleira. E Celeste sentiu! Sentiu esse algo, indescritível e inconfessável, aceitou e agradeceu em mente e coração. Era um mistério, um segredo…só ela e António saberiam.

 

CONTINUA

 

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Para ouvir, enquanto lê: The Secret Language of Angels - Lisa Gerrard

 

 

 

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