Quartas de Contos
Avelina IV
AVELINA
(Continuação)
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Avelina foi crescendo em graça, simpatia e doçura. Era uma criança meiga e prestativa, desde tenra idade ajudava os pais adotivos, porém, sempre que podia escapulia-se para a floresta, para o seu meio natural e originário, onde passava horas junto da aveleira que engrandecia a cada ano que passava.
Celeste e António adoravam a criança que lhes fora confiada, um milagre escondido dos vizinhos, somente dizendo que era uma parente que tinha ficado órfã e que lhes foi entregue devido à estreiteza de laços com a mãe. Mentira singela e que de muito tinha de verdade…
Os dons de Avelina cedo se mostraram. Quando algum animal se magoava ou adoecia, ela prontamente os cuidava e curava em poucos dias. A horta e as floreiras ganhavam vigor e rapidamente germinavam mal a criança delas cuidasse. Os dias iniciavam-se sempre numa alegre cantoria, qual pássaro numa manhã soalheira. As mãos de toque quente e macio acariciavam, sem se cansarem, o rosto e os corações do idoso casal.
Avelina crescia em delicadeza, carinho e beleza. Os seus olhos, em tons de verde e em forma de avelã, tudo viam num assombro pela Natureza e pelo mundo que ansiava conhecer. Os cabelos doirados escureceram um pouco e caiam-lhe pelas costas em ondulados semelhantes à casca do tronco da aveleira. Era delgada, mas de formas femininas que o tempo foi esculpindo até ser mulher.
Celeste tinha um único pesar em relação à filha adotiva – não poder vê-la, apreciar como era bela! Como eram os traços do seu delicado rosto, os tons dos olhos e do cabelo, como lhe assentavam, por si feitos, os vestidos nessas formas de mulher jovem que ela também já fora.
António inquietava-se pela formusura de Avelina que despertava atenções e paixões dos jovens da aldeia e arredores. Nos bailes e afazeres comunitários era o centro das atenções, deixando as outras moças perdidas de ciúmes e invejas. Celeste não lhe dava calor, no entanto, também receava pela jovem, inocente e doce sem pouco entender a maldade das pessoas.
Avelina, já jovem-mulher, continuava as suas visitas diárias à floresta, à aveleira que a germinara, era ali que ela se sentia completa. Os idosos também o faziam, como há muitos anos, porém de mês a mês no inverno e quase semanalmente no verão. Era a rapariga quem cuidava com mais assiduidade da árvore, pois o casal já ia muito avançado na idade.
Um certo dia invernoso, junto ao quente da lareira, bebericando uma caneca de infusão de tília, Avelina sentara-se com Celeste a dobar os fios de lã, quando surpreendeu a idosa com a inevitável pergunta:
— Mãe Celeste, porque não tenho umbigo? Há muito que o reparei, mas só agora sinto a necessidade de lho perguntar.
Celeste preparara-se desde cedo para esta questão, mesmo assim sentiu um frio a percorrer-lhe a espinha, receava que a moça ao saber a verdade se rebelaria e os quisesse deixar.
A idosa colocou de parte as meadas de lã, agarrou nas mãos quentes e macias de Avelina e respondeu tão sinceramente quanto soube. António assomou à porta e deixou-se ficar a ouvir. A rapariga tinha um ar de espanto, os belos olhos arregalados e a boca semiaberta de assombro. Nunca se sentira diferente nem especial como Celeste lhe dizia, aquela vida era tão natural para ela. Poderia enamorar-se como as outras jovens? O que iria acontecer se ela quisesse ser mãe? Seria ela um ser humano? Como era possível ter nascido de uma árvore? Levantou-se de supetão, corada, os lábios cerrados num trejeito, as mãos crispadas. O mocho tombou e ela correu feita louca para a floresta, para a aveleira que pacientemente vivia na clareira, alheia ao turbilhão que agitava o coração e a alma de Avelina. Celeste procurou o refúgio do peito de António. O seu querido António! Ela temera aquele acontecimento, porém sabia-o ser inevitável. Ambos abraçados, choravam angustiados, receando não voltar a ver Avelina, a sua menina-milagre.
À longa noite, gelada e invernosa, sucedera-se o dia, cinzento e triste como os corações de António e Celeste, pesados e chorosos pela sua querida Avelina.
— Vamos procurar Avelina!
— Ela está na floresta, António!
— Como sabes? Poderá estar mal… a noite foi gelada…
Celeste abraçou o marido e disse-lhe, sussurrando:
— Ela está bem. Está com a mãe… deixa-a, há-de voltar! Esta noite sonhei com elas, juntas a partilharem memórias e sabedorias e pude ver como é Avelina! Oh, como é bonita, António! Parece uma fidalga, fina de trato e presença. Não admira todos se encantarem com ela…, no entanto é o seu ser, a sua alma dividida em gente e vegetal que a tornam especial.
Passaram-se três dias e três noites. Avelina voltou vigorosa, madura e nada proferiu ao que se sucedera, apenas abraçou os seus pais adotivos e beijou-os longamente. Trazia um odor a húmus, a vegetação e a árvores, o odor das florestas ancestrais. Desde esse dia que a jovem era mais protetora e cuidadosa com António e Celeste, porém mais reservada, menos efusiva e ingénua.
Os anos iam passando. António e Celeste rondavam os oitenta e muitos anos, quando tudo se precipitou.
Naquele dia, o vento enrolava nas cercanias, uivava feito lobo pelas frinchas das portas e das janelas, bufava ferozmente contorcendo-se pelo meio da vegetação, levando tudo pelo ar. Nada tinha peso nem impedimento para ele. Benziam-se as idosas, proferiam-se orações para afastar o demo que trazia o vento por ali. Lá longe, acumulavam-se os restos das podas, secas pelo sol quente quase de verão. A chuva andava arredia nesse outono. Tudo esperava seco pela volta da abençoada chuva. Na pressa das limpezas para vagar os terrenos para cultivo, acendeu-se uma incauta fogueira que foi a desgraça da floresta! O fogo avançou ligeiro, sem que houvesse impedimento, lambendo as árvores, provando-as indefesas e seguidamente devorando-as sem escrúpulos.
A frondosa aveleira, já enfeitada pelos brincos de avelãs que despontavam jovens e viçosas, estava no caminho do endemoninhado fogo. Quando o lume zombador, avivado pelo vento degustou o corpo esguio da árvore, começou por devorar a sua pele grossa, mas sem defesas para impedir o monstro de a consumir. Crepitava a madeira num silvo como um grito horrível de uma garganta humana. A sua vida foi ceifada num repente, restando um corpo negro, hirto de cinza, dor e morte. Avelina correu para a clareira mal sentiu no seu peito esse grito florestal, pedindo por ajuda! Quando lá chegou atirou-se aos pés da aveleira que jazia fumegante sem nada poder fazer, apenas chorar até os olhos não verterem mais água, esse líquido essencial à vida e que apagaria aquele fogo indomável.
Com a aveleira pereceram muitos animais, outras árvores de fruto e as anciãs da floresta, que tanto davam à aldeia e pela incúria por ela perderam a vida.
O luto tomou conta da vida de António, Celeste e Avelina. Viviam por metade, sem alegria, sem ânimo, sem as vontades de outrora. Avelina vivia órfã, sem o consolo vegetal daquela mãe que lhe engendrou o ser, e Celeste e António sem a árvore bondosa que lhes concedeu uma filha para cuidar e amar, enchendo-lhes os dias da velhice de luz e calor.
Os meses passaram, arrastando-se num entorpecimento sem fim. António padecia de uma dor inexplicável que o atirou para uma cama, depois perdeu a noção se si, da sua Celeste e de Avelina e, finalmente, do mundo. Partiu numa manhã de primavera ao som do primeiro canto dos melros na pereira do jardim. Encontrou o seu eterno descanso junto ao espólio da aveleira, partilhando o seu corpo com as raízes mortas da deusa mística da fertilidade e da reconciliação.
Celeste perdeu o pouco brilho que ainda lhe restavam naquele azul dos seus olhos cegos e o corpo dobrava-se num ângulo que a impedia de ficar ereta, diminuindo-lhe o tamanho da já baixa estatura. Avelina entregou-se ao mudo cuidar da idosa, a dor consumia-lhe a alma humana e secava-lhe o espírito de árvore, tornava-se seca, definhava sem a aura vibrante que lhe iluminava o rosto e lhe dava graça ao corpo jovem, envelhecia a olhos vistos.
— Leva-me para a floresta, Avelina. O meu tempo finda-se aqui, querida filha. Leva-me por favor! Ficas lá comigo, bem o sabes que deves fazê-lo. Quero-me finar junto do meu António...
— Mas aqui é que tem conforto, mãe Celeste. Na floresta ficará exposta…
— Não importa! Leva-me pela manhã, preciso de ir!
No dia seguinte, Avelina com gentil cuidado ajudou Celeste a acomodar-se no burro e levou-a à floresta. A Natureza, na sua infinita renovação, já escondera a maldade que o fogo fizera, ocultara a morte, o cinzento das cinzas e já se viam rebentos de verde vivo a despontar aqui e ali. O cheiro da floresta fora alterado pelo incêndio, Celeste bem o sentiu, mas as árvores, os arbustos e as plantas redobravam os esforços para o disfarçar, com os seus odores frescos.
Avelina, com ternura, envolveu Celeste na quente manta de lã fiada com os fios dobados naquele dia em que conhecera a sua origem. Sentou-se bem encostada à idosa para poder aquecê-la com o calor do seu corpo e, assim, adormeceram sob o sol envergonhado daquela primavera que surgia vagarosa. Quando Avelina despertou, tocou em Celeste, esta volveu os seus lindos olhos celestiais e sorriu-lhe.
— Finalmente vejo-te, querida filha! Avelina irei amar-te sempre... — a idosa suspirou, ficando o sorriso impresso no rosto sulcado pelas rugas, pelos anos e pela vida. A rapariga ainda chamou pelo seu lindo nome, mas a idosa já partira.
Avelina estava sozinha no mundo. Sepultara a mãe que a criara e agora, órfã de duas mães, deixou-se ficar junto ao toco que sobrara do tronco carbonizado da aveleira. Desejava também poder ir, desmaterializar-se, transformar-se, ser árvore. Sentindo uma infelicidade que o seu coração não conseguia suportar, deixou-se ficar por ali algum tempo. Depois, num belo dia verdadeiramente primaveril, após banhar-se no fresco ribeiro e deixar que as límpidas águas lhe lavassem a memória, qual Lethes, despiu-se e desprendeu os cabelos sedosos, sentou-se encostando-se ao tronco da falecida aveleira, enterrou os finos dedos das mãos no solo fértil e olhou para o céu. Sem noção do tempo, do fluir dos acontecimentos, inibiu a vontade de comer, de pensar, de querer, apenas sentia o solo sob o seu corpo inerte. Os olhos viam o céu numa sucessão de dias e de noites, viam as estrelas, os cometas, as aves, os raios de sol que a aqueciam, mas ela somente sentia o vento, a chuva, o sol e todos os elementos que lhe suportavam a respiração leve. Os dedos transformavam-se em raízes que se expandiam para o fundo solo ao encontro das raízes da sua mãe, depois foram os braços e as pernas afundando na terra escura, ramificando-se e fortalecendo-se nos despojos de António e de Celeste, agora unos para sempre. O esbelto corpo foi ganhando a robustez da madeira, os longos cabelos foram pontilhados de lindas folhas serrilhadas, redondas de feminilidade e, finalmente, o sangue foi dando lugar à seiva que aguardara aqueles anos para poder alimentar o novo corpo forte e maleável que cresceria ligeiro em direção à luz.
Hoje, na minha caminhada matinal, num dia lindo e luminoso de primavera, paro na clareira da frondosa floresta e contemplo a bela aveleira que se ergue na sua soberania florestal como uma deusa pagã, intemporal, reconciliadora, fértil e justiceira, aguardando pacientemente neste recanto mais resguardado da floresta por alguém que a toque e a acarinhe por uma vida inteira. Acerco-me dela e abraço-a, sinto o seu palpitar que vive nessa beleza eterna de ser a árvore mais mulher que jamais tinha sido vista. Na sua elegância de troncos esguios, nos arredondados e serrilhados das folhas, como bordados, nas flores delicadas e dispostas como um ramo de noiva e nos frutos que emergem do seu aconchego como brincos de dona rica!
FIM
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Para ouvir, enquanto lê: Clannad - I Will Find You