Recomeçar
Microconto
Subia a ladeira, cansado, sem fôlego, as pernas já não tinham a mesma força de outrora. O velho parou para recuperar energias. Mirou lá do alto o mundo, todo ele repleto de humanos e tão pouca humanidade. Viu a destruição, a fome e a guerra, a natureza devastada, a exploração desenfreada dos seus recursos, a biodiversidade alterada, as crianças subjugadas sem futuro...Baixou os braços, derrotado. No início, pensara que seria ele a fazer a diferença, como estava enganado! Subiu mais um pouco, a muito custo lá se arrastou para o cume e sentou-se numa fraga. Do alto dos seus 365 dias contemplou a ampulheta que retirara da bolsa. A última estrela, quase sem luz, percorreu o fino e estreito gargalo que ligava os reservatórios bojudos da pequena âmbula. Ficou a observá-la na mão, o tempo esgotara-se. Ele, o velho ano, estava quase a desaparecer. Já sentia um formigueiro estranho nos pés. Então era assim que findaria? Lá em baixo, iniciavam-se os festejos. Todo o firmamento se encheu de luz, cores, estouros. Como poderiam os homens festejar com tanta tristeza pelo mundo?
O ano velho sentia-se cada vez mais fraco, pensar era um desafio, todos os pensamentos e recordações se emaranhavam na sua memória, como um novelo sem começo nem fim.
A noite ganhava luz, emprestada pelas celebrações do nascimento do novo ano. Neste entremeio de tempo, em que fenece o ano velho e se inicia o novo, é o tempo do desconhecido, do mistério. O ancião olhou novamente para o mundo e a par deste surgiu, como embaçado tipo espectro, um outro mais limpo, luminoso e feliz. Como era possível? Seria um mundo possível de existir? Talvez sim, se a humanidade o soubesse fazer. Mas, neste entremeio de tempo, na saída do ano velho e entrada do ano novo, era a magia que acontecia, a possibilidade das coisas maravilhosas existirem, o desejo de 365 dias de paz, bondade, felicidade, saúde e realizações.
Estava nestas cogitações, quando ouviu um ruído atrás de si e com muito esforço se voltou. Surgiu por detrás daquela frondosa árvore, que estendia os seus longos braços como um amplexo ao mundo, uma jovem mulher. Trazia ao colo uma criança. Era linda, toda ela radiosa. Esperança, a jovem mãe, poisou o tenro ser sob a árvore para que ali crescesse e se alimentasse, em alimento e sabedoria, até ao momento em que poderia percorrer o mundo com os próprios pés. Dar-se-ia incondicionalmente aos homens ao longo de tantos dias. Tempo em que a humanidade pudesse aprender, projetar e realizar grandes acontecimentos em prol de todos que habitam o planeta.
O ano velho, sabia o que dali para a frente iria acontecer. Seria um enorme esforço viver e dar-se a quem não o quer escutar. Voltou-se, abarcando com o olhar, na tentativa de guardar o último momento de vida a contemplar o que deixava. Agora sentia que o formigueiro lhe tomava todo o corpo. De si já nada viu, nem mãos, nem torso...sentiu-se a ser sugado, a perder o peso, a tornar-se névoa. De repente, era uma poeira de luz a espalhar-se pelo cosmos da eternidade. O ano velho findara finalmente.
Já o lusco-fusco se insinuava, quando um choro de recém-nascido se ouviu, todo este mundo foi envolto pela luz doirada da aurora, num anúncio que se queria de paz, quietude e felicidade para dar as boas-vindas ao jovem e pequenino Ano Novo.
Votos de feliz Ano Novo
Para escutar, enquanto lê: Eternal Eclipse - Lullaby for Sadness